quinta-feira, 25 de abril de 2013

Tratado da Verdadeira Devoção à Santíssima Virgem - Capítulo Sexto



CAPÍTULO SEXTO

FIGURA BÍBLICA DESTA PERFEITA DEVOÇÃO:


REBECA E JACÓ
183. De todas as verdades que acabo de escrever, em relação

à Santíssima Virgem e a Seus filhos e servos, dá-nos o

Espírito Santo, na Sagrada Escritura, uma imagem admirável:

a história de Jacó, que recebeu a benção de seu pai Isaac,

devido aos cuidados e diligências de sua mãe Rebeca. Ei-la,

como a narra o Espírito Santo (Gn 27). Depois acrescentarei a

sua explicação.


Artigo Primeiro

Rebeca e Jacó

I. História Bíblica

184. Esaú tinha vendido o direito de primogenitura a seu

irmão Jacó (Gn 25, 33). Vários anos mais tarde, Rebeca, mãe

dos dois irmãos, que amava ternamente Jacó, assegurou-lhe

esta primazia por meio dum santo expediente, todo cheio de

mistérios. Isaac, sentindo-se muito velho, quis abençoar os

seus filhos antes de morrer. Chamou então Esaú, o filho que

amava, e ordenou-lhe que fosse caçar alguma coisa para ele

comer a fim de em seguida lhe dar a sua benção. Rebeca avisou

imediatamente Jacó do que se passava e mandou-o buscar

dois cabritos do rebanho. Logo que este os entregou à sua

mãe, ela preparou deles, para Isaac, o que sabia que ele gostava.

Vestiu Jacó com as roupas de Esaú, que ela guardava.

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Cobriu-lhe as mãos e o pescoço com a pele dos cabritos, para

que o pai, que era cego, julgasse, pela pele da mão, que era

Esaú, embora ouvisse a voz de Jacó. Efetivamente Isaac, surpreendido

ao ouvir-lhe a voz, que julgou ser a de Jacó, mandou-

o aproximar-se. Tendo-lhe apalpado as mãos cobertas de

pele, disse que, na verdade, a voz era de Jacó, mas que as

mãos eram de Esaú. Depois de ter comido e de ter aspirado,

ao beijar o filho, o aroma do seu vestido perfumado, abençoou-

o, desejando-lhe o orvalho do Céu e a fecundidade da

Terra. Estabeleceu-o senhor de todos os seus bens, e concluiu

a benção por estas palavras: “Aquele que te amaldiçoar,

seja também maldito, e o que te abençoar seja cumulado

de bênçãos” (Gn 27, 29).

Mal Isaac terminara de pronunciar estas palavras, entrou

Esaú trazendo já preparado o que tinha apanhado na caça,

para que o pai o abençoasse em seguida. Este Santo Patriarca

ficou tomado de extrema surpresa, ao compreender o que se

tinha passado. Mas, longe de retratar o que fizera, confirmouo,

pois reconhecia neste proceder, claramente, o dedo de Deus.

Então, Esaú irrompeu em grandes brados, como nota a Escritura,

e, vociferando contra a fraude do irmão, perguntou ao

pai se tinha só uma benção. Notam neste ponto os Santos Padres

que Esaú é a imagem daqueles que, conciliando facilmente

Deus com o mundo, querem gozar ao mesmo tempo as

consolações do Céu e da Terra. Isaac, movido pelos gritos de

Esaú, abençoou-o por fim, mas com uma benção terrena, e

submetendo-o ao irmão. Concebeu Esaú, por isso, ódio tão

profundo contra Jacó, que, para matá-lo, só esperava pela

morte do pai. E Jacó não teria podido evitar a morte, se Rebeca,

sua querida mãe, o não tivesse salvado pelas diligências e

pelos bons conselhos que lhe deu, os quais ele seguiu com

fidelidade.

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II. Explicação da História

185. Antes de explicar esta história, tão cheia de beleza, é

preciso notar que, segundo todos os Santos Padres e intérpretes

da Sagrada Escritura, Jacó representa Jesus Cristo e os

predestinados, enquanto Esaú figura os réprobos. Basta examinar

o procedimento dum e doutro para verificá-lo.

Esaú, figura dos réprobos

1) Esaú, o primogênito, era forte e robusto de corpo,

destro e hábil no manejo do arco e na arte da caça.

2) Quase não parava em casa e, confiando apenas na

sua força e engenho, trabalhava sempre fora.

3) Não se esforçava muito por agradar a Rebeca, sua

mãe, e não fazia nada por ela.

4) Era tão guloso, e apreciava tanto a comida, que vendeu

o direito de primogenitura por um prato de lentilhas.

5) Como Caim, era muito invejoso de seu irmão Jacó,

que encarniçadamente perseguia (Gn 4, 8).

186. Eis a conduta diária dos réprobos:

1) Fiam-se na sua força e diligências para os negócios

temporais. São muito fortes, muito hábeis e esclarecidos para

as coisas da Terra, mas muito fracos e ignorantes nas coisas

do Céu.

187. 2) Por isso: Nunca ou quase nunca permanecem em

sua casa, ou seja, no seu íntimo (Mt 6, 6). O íntimo é a casa

interior e essencial que Deus deu a cada homem para que, a

seu exemplo, nela habite, pois Deus permanece sempre em si

mesmo. Os réprobos não amam o recolhimento, nem a

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espiritualidade, nem a devoção interior, e têm por espíritos

fracos, piegas e selvagens os que são interiores e retirados do

mundo, e que trabalham mais interior que exteriormente.

188. 3) Os réprobos pouco se preocupam com a Devoção à

Santíssima Virgem, Mãe dos predestinados. É verdade que

não a odeiam formalmente. Algumas vezes tributam-lhe louvores,

dizem que a amam, e praticam até alguma devoção em

sua honra. Mas, de resto, não suportariam que alguém a amasse

ternamente, porque não têm para com Ela as ternuras de Jacó.

Acham sempre algo a dizer contra as práticas de devoção a

que se entregam fielmente os bons filhos e servos de Maria,

para merecer o seu afeto. Não julgam esta Devoção necessária

para a salvação, e acham que basta não odiar formalmente

a Santíssima Virgem e não desprezar abertamente a sua Devoção.

Julgam ter ganhado a estima da Santíssima Virgem e

ser Seus servos só por rezar ou resmungar algumas orações

em sua honra, sem ternura para com Ela e sem correção da

própria vida.

189. 4) Estes réprobos vendem o seu direito de

primogenitura, isto é, os gozos do paraíso, por um prato de

lentilhas, que são os prazeres da Terra. Riem, bebem, divertem-

se, jogam, dançam etc, sem se preocuparem, como Esaú,

de se tornar dignos das bênçãos do Pai celeste. Numa palavra,

só pensam na Terra, só amam a Terra, só falam e agem

para a Terra e seus gozos, vendendo por um breve momento

de prazer, por uma vã fumaça de honra e um pedaço de Terra

dura, amarela ou branca, a graça batismal, a veste da sua inocência,

a sua herança celeste.

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190. 5) Enfim, os réprobos odeiam e perseguem continuamente

os predestinados, aberta ou disfarçadamente. Molestam-

nos, desprezam-nos, criticam-nos, contrariam-nos, injuriam-

nos, roubam-nos, enganam-nos, empobrecem-nos,

escorraçam-nos, e reduzem-nos a pó. Quanto a eles, fazem

fortuna, buscam os seus deleites, vivem alegremente, enriquecem,

engrandecem-se e levam vida folgada.

Jacó, figura dos Predestinados

191. 1) Jacó, o mais novo, era de compleição fraca, manso,

pacífico, e estava habitualmente em casa, para merecer a estima

de sua mãe Rebeca, a quem amava ternamente. Se acaso

saía, não era por sua própria vontade, nem pela confiança que

tinha nas suas habilidades, mas para obedecer à sua mãe.

192. 2) Amava e honrava sua mãe, pelo que ficava em casa

junto dela. A sua maior alegria era vê-la, evitava tudo o que

lhe pudesse desagradar e fazia tudo o que julgava que lhe

dava gosto. Tudo isto aumentava o amor que Rebeca lhe consagrava.

193. 3) Em todas as coisas se mostrava submisso à sua querida

mãe, obedecendo-lhe inteiramente em tudo, prontamente

sem demora, e amorosamente sem se queixar. Ao menor

sinal da sua vontade, o pequenino Jacó corria e trabalhava.

Acreditava, sem raciocinar, em tudo o que Rebeca lhe dizia.

Por exemplo, quando ela o mandou ir buscar dois cabritos, a

fim de preparar de comer para Isaac, Jacó não lhe objetou que

bastava um para a refeição duma só pessoa, mas, sem discutir,

fez o que ela lhe dissera.

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194. 4) Tinha uma confiança sem limites na sua querida mãe.

Como não se fiava de modo algum no seu próprio saber, apoiava-

se unicamente nos cuidados e proteção da mãe. Chamava

por ela em todas as necessidades e consultava-a em todas as

dúvidas. Por exemplo, quando lhe perguntou se, em vez da

bênção, não receberia a maldição do pai, acreditou e confiou

nela quando ela lhe disse que tomaria sobre si essa maldição.

195. 5) Finalmente, imitava, na medida das suas forças, as

virtudes que via em sua mãe. Parece que uma das razões por

que permanecia sedentário, em casa, era o querer imitar a mãe,

que era tão virtuosa, e fugir das más companhias, que corrompem

os costumes. Por este meio, tornou-se digno de receber

a dupla bênção de seu querido pai.

196. Esta é também a conduta dos eleitos na vida de cada dia:

1) Conservam-se em casa com sua mãe. Quer dizer que

gostam do retiro, são interiores e dão-se à oração. Mas fazem

isto seguindo o exemplo e em companhia de sua mãe, a Virgem

Santíssima, cuja glória reside toda no interior e que, durante

toda a vida, tanto amou o retiro e a oração.

É verdade que aparecem algumas vezes no mundo, mas

é para obedecer à vontade de Deus e de sua querida Mãe, para

cumprir os seus deveres de estado. Por maiores que sejam, na

aparência, as coisas que fazem exteriormente, estimam muito

mais as coisas que fazem dentro de si, no interior, em companhia

da Santíssima Virgem. É aí que realizam a grande obra

da sua perfeição, em comparação com a qual todas as outras

não passam de jogos de criança.

Seus irmãos e irmãs trabalham exteriormente com muita

força, habilidade e sucesso, no meio do louvor e aplauso do

mundo. Mas eles sabem, pela luz do Espírito Santo, que há

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muito mais glória, vantagem e prazer em permanecer escondidos

no recolhimento com Jesus, seu modelo, numa inteira e

perfeita submissão à sua Mãe.

Sabem que isto vale muito mais que efetuar no mundo,

por si mesmos, maravilhas de natureza e de graça, como tantos

Esaús e condenados. “A glória de Deus e a riqueza dos

homens encontraram-se na casa de Maria” (Sl 111, 3).

Senhor Jesus, como são amáveis os Vossos

tabernáculos! O passarinho achou a casa onde morar, e a rola

um ninho onde abrigar os seus filhinhos. Oh! Como é feliz o

homem que habita em casa de Maria, onde Vós fostes o primeiro

a habitar! É nesta morada dos predestinados que o homem

recebe socorro de Vós somente, e que dispõe no seu

coração as ascensões e graus de todas as virtudes, a fim de se

elevar à perfeição neste vale de lágrimas. “Quão deliciosas

as Vossas moradas!” (Sl 83, 1-8).

197. 2) Os eleitos amam ternamente e honram de verdade a

Santíssima Virgem, como sua boa Mãe e Senhora. Amam-na

não só com os lábios, mas em verdade; honram-na não só

exteriormente, mas no fundo do coração. Evitam, como Jacó,

tudo o que pode desagradar-lhe, praticam fervorosamente tudo

o que julgam poder atrair a sua benevolência. Trazem-lhe e

dão-lhe não dois cabritos, como Jacó a Rebeca, mas o corpo e

a alma, com tudo o que deles depende, e que estavam figurados

nos dois cabritos de Jacó. E isto eles fazem:

1º. Para que Ela os receba como coisa que lhe pertence;

2º. Para que os mate e faça morrer para o pecado e para

si mesmos, despojando-os da sua própria pele e do seu amor

próprio. É por este meio que agradam a seu Filho Jesus, que

só quer para serem Seus amigos e discípulos os que estão

mortos a si mesmos;

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3º. Para que Ela os prepare segundo o gosto do Pai

celeste e para a sua maior glória, que Ela conhece melhor do

que nenhuma outra criatura;

4º. Para que esse corpo e essa alma, por Seus cuidados

e intercessão bem purificados de toda mancha, bem mortos,

bem despojados e preparados, sejam um manjar delicado, digno

do paladar e da benção do Pai celeste.

Não é isto o que hão de fazer as almas predestinadas,

que apreciem e pratiquem a consagração perfeita a Jesus Cristo

pelas mãos de Maria, que nós ensinamos, querendo assim

mostrar a Jesus e a Maria um amor efetivo e corajoso?

Os réprobos dizem bastante que amam Jesus, que amam

e honram Maria, mas não com sua substância e todos os seus

haveres (Pr 3, 9), e não até o ponto de lhes sacrificar o corpo

com seus sentidos e a alma com as suas paixões, como os

predestinados.

198. 3) Os eleitos são submissos e obedientes à Santíssima

Virgem, como à sua boa Mãe. Nisto seguem o exemplo de

Jesus Cristo, que, dos trinta e três anos que viveu na Terra,

empregou trinta a glorificar seu Pai por uma perfeita e inteira

submissão à sua Santa Mãe. Obedecem-lhe seguindo exatamente

os Seus conselhos, como o pequeno Jacó seguia os de

Rebeca, que lhe disse: “Meu filho, segue os meus conselhos”

(Gn 27, 8). Obedecem-lhe ainda como os convidados das bodas

de Caná, a quem a Santíssima Virgem disse: “Fazei tudo

o que meu Filho vos disser” (Jo 2, 5). Por ter obedecido à sua

mãe, Jacó recebeu a benção como por milagre, visto que por

natureza não lhe cabia. E os convidados das bodas de Caná,

por terem seguido o conselho da Virgem Santíssima, foram

honrados com o primeiro milagre de Jesus Cristo, que aí transformou

a água em vinho a pedido de sua Mãe.

139 -

De igual modo, todos os que até o fim dos séculos receberem

a benção do Pai celeste e forem honrados com as

maravilhas de Deus, não receberão essas graças senão em conseqüência

da sua perfeita obediência a Maria. Os Esaús, pelo

contrário, perdem a benção por falta de submissão à Santíssima

Virgem.

199. 4) Os eleitos têm uma grande confiança na bondade e

no poder da Virgem Santíssima, sua boa Mãe. Reclamam sem

cessar o seu socorro; consideram-na como a sua estrela polar,

que os levará a bom porto; descobrem-lhe as suas penas e

necessidades, com muita abertura de coração; confiam nas

suas entranhas de misericórdia e doçura para, por sua intercessão,

alcançar o perdão de seus pecados, ou para saborear

as suas doçuras maternais em meio às penas e sofrimentos;

lançam-se mesmo, escondem-se e perdem-se duma forma admirável

no seu seio amoroso e virginal, para serem abrasados

do Puro Amor, para aí serem purificados das menores

manchas, e para encontrarem Jesus, que aí reside como em

seu mais glorioso trono. Oh! Que ventura! “Não julgueis que

haja maior felicidade em habitar no seio de Abraão que no

seio de Maria, pois o Senhor aí colocou o seu Trono”, diz o

abade Guerric.

Os réprobos, ao contrário, põem toda a sua confiança

em si mesmos. Não comem senão o alimento dos porcos como

o filho pródigo; não se alimentam senão de Terra como os

sapos, e só amam as coisas visíveis e exteriores como os mundanos.

Não apreciam as doçuras do seio e das entranhas de

Maria. Não sentem um certo apoio e uma certa confiança que

os predestinados sentem para com a Santíssima Virgem, sua

boa Mãe. Amam miseravelmente a sua fome das coisas exteriores

- como diz São Gregório -, porque não querem provar a

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doçura que lhes está preparada dentro de si mesmos e dentro

de Jesus e de Maria.

200. 5) Finalmente, os predestinados seguem os caminhos

da Santíssima Virgem, sua boa Mãe. Isto é, imitam-na, e é

nisto que consiste verdadeiramente a sua felicidade e devoção.

É este o sinal infalível da sua predestinação como lhes

assegura esta boa Mãe: “Bem-aventurados os que praticam

as minhas virtudes e caminham nas pegadas da minha vida,

com o auxílio da divina graça” (Pr 8, 32).

São felizes neste mundo, durante a vida, pela abundância

das graças e doçuras que da minha plenitude lhes comunico

mais abundantemente que àqueles que não me imitam de

tão perto. São felizes na morte, que é doce e tranqüila, e a que

assisto ordinariamente, para os conduzir, eu mesma, às alegrias

eternas. Finalmente, serão felizes na eternidade, porque

nunca nenhum dos meus servos dedicados, que imitou as minhas

virtudes durante a vida, se veio a perder.

Os réprobos, pelo contrário, são infelizes durante a

vida, na morte e na eternidade, porque não imitam as virtudes

de Maria. Contentam-se tão somente de pertencer a alguma

de suas confrarias, de recitar qualquer prece em sua honra,

ou de realizar alguma outra devoção externa.

Ó Santíssima Virgem, minha boa Mãe, como são felizes

- repito-o num transporte de íntima alegria -, como são

felizes aqueles e aquelas que, não se deixando seduzir por

uma falsa devoção para convosco, seguem fielmente os Vossos

caminhos, os Vossos conselhos e as Vossas ordens! Mas

quão desgraçados e malditos aqueles que, abusando da Vossa

Devoção, não guardam os mandamentos de Vosso Filho: “Malditos

todos aqueles que se afastam dos Vossos mandamentos”

(Sl 118, 21).

141 -

Artigo Segundo

Maria Virgem e os Seus escravos de amor

201. Vejamos agora os amorosos serviços que a Santíssima

Virgem, como a melhor de todas as mães, presta aos Seus

fiéis servidores, que se lhe deram da maneira que expus, e

segundo a figura de Jacó.

I. Ela os ama

“Eu amo aqueles que me têm amor” (Pr 8, 17).

1) Ama-os porque é sua verdadeira Mãe, e uma mãe

ama seus filhos, fruto das suas entranhas;

2) Ama-os por gratidão, visto que efetivamente eles a

amam como sua boa Mãe;

3) Ama-os porque, sendo predestinados, Deus lhes tem

amor: “Amei Jacó e odiei Esaú” (Rm 9, 13);

4) Ama-os porque se lhe consagraram inteiramente e

se tornaram seu quinhão e sua herança: “Recebe Israel por

tua herança“ (Eclo 24, 13).

202. Ela os ama ternamente, e com mais ternura que todas

as mães juntas. Juntai, se puderdes, num só coração de mãe e

para com um único filho, todo o amor natural que as mães do

mundo inteiro têm pelos seus filhos: certamente essa mãe

amará muito esse filho. No entanto, verdade é que Maria ama

ainda mais ternamente Seus filhos do que aquela mãe amaria

o seu. Ela não os ama apenas com afeto, mas também com

eficácia. O seu amor por eles é ativo e efetivo, como o de

Rebeca por Jacó, e ainda mais.

- 142

Eis o que esta boa Mãe, de quem Rebeca era apenas uma

imagem, realiza para obter a Seus filhos a bênção do Pai celeste:

203. 1) Ela espreita, como Rebeca, as ocasiões favoráveis

para lhes fazer bem, para os engrandecer e enriquecer. Ela vê

claramente em Deus os bens e os males, os bons e os maus

sucessos, as bençãos e as maldições divinas. Por isso dispõe

de longe todas as coisas, para livrar os Seus servos de toda a

espécie de males, e para os cumular de todos os bens. Assim,

se apresentar-se-lhe a ocasião de obter, em Deus, um bom

prêmio ou proveito, pela fidelidade de alguma criatura a qualquer

alta missão, é fora de dúvida que Maria obterá esta graça

a um dos Seus filhos e servos fiéis, juntamente com a graça

de tudo levar a cabo fielmente. “Ela própria se ocupa dos

nossos interesses e negócios”, diz um Santo.

204. 2) Ela os favorece com bons conselhos, como Rebeca

a Jacó: “Meu filho, segue os meus conselhos” (Gn 27, 8). E,

entre outros conselhos, inspira-lhes o de lhe trazerem dois

cabritos, isto é, o corpo e a alma, para lhos consagrarem, a

fim de que Ela prepare um festim agradável a Deus. Inspiralhes

ainda o conselho de fazerem tudo o que seu Filho Jesus

Cristo ensinou com suas palavras e exemplos. Se não é diretamente

que lhes dá estes conselhos, dá-lhos pelo ministério

dos anjos, cuja maior honra e prazer é obedecer a alguma das

suas ordens para baixar à Terra e vir em socorro de algum dos

servidores d'Ela.

205. 3) Quando lhe levamos e consagramos o corpo e a alma,

e tudo o que deles depende, sem nada excetuar, que faz esta

boa Mãe? Aquilo que outrora fez Rebeca aos dois cabritos

que Jacó lhe trouxe:

143 -

1º. Sacrifica-os, fazendo-os morrer para a vida do velho

Adão;

2º. Esfola-os e tira-lhes a pele natural, que são as inclinações

da natureza, o amor próprio, a vontade própria e todo

o apego às criaturas.;

3º. Purifica-os de suas manchas, impurezas e pecados;

4º. Prepara-os ao gosto de Deus e para a sua maior

glória. Como só Ela conhece perfeitamente o gosto divino e a

maior glória do Altíssimo, também só Ela pode aprontar e

preparar, sem se enganar, o nosso corpo e a nossa alma segundo

esse gosto infinitamente elevado e essa glória infinitamente

escondida e eterna.

206. 4) Esta boa Mãe, tendo recebido a oferta perfeita que

lhe fizemos, de nós mesmos e dos nossos méritos e satisfações,

por meio da Devoção de que já falei, e tendo-nos uma

vez despojado dos nossos velhos hábitos, prepara-nos e torna-

nos dignos de comparecer diante de nosso Pai celeste:

1º. Reveste-nos com os vestidos apropriados, novos,

preciosos e perfumados de Esaú, o primogênito, isto é, de

Jesus Cristo, seu Filho. Ela guarda estas vestes em sua casa,

quer dizer, tem-nas em seu poder, sendo a tesoureira e

dispensadora universal dos méritos e das virtudes de Jesus

Cristo, seu Filho. E Maria pode dá-los e comunicá-los a quem

quer, quando quer, como quer e na medida que quer, como já

acima vimos (nn. 25 e 141).

2º. Envolve as mãos e o pescoço de Seus servos com a

pele dos cabritos mortos e esfolados, isto é, adorna-os com os

méritos e o valor das ações deles mesmos. Ela mata e mortifica

o que há de impuro e imperfeito nas suas pessoas, mas não

perde nem dissipa todo o bem que a graça neles operou. Guarda-

o e aumenta-o, para fazer dele o ornamento e a força de

- 144

seu pescoço e de suas mãos, ou seja, para lhes dar fortaleza

em levar o jugo do Senhor, que assenta sobre o pescoço, e

para operarem grandes coisas para glória de Deus e a salvação

de seus pobres irmãos.

3º. Ela dá um novo perfume e uma nova graça a essas

vestes e ornamentos, comunicando-lhes as suas próprias vestes,

quer dizer: os méritos e virtudes, que Ela lhes legou em

testamento ao morrer, como diz uma santa religiosa do século

passado, morta em odor de santidade, e que o soube por revelação.

Deste modo, todos os Seus domésticos, fiéis servos e

escravos estão duplamente vestidos com vestes de seu Filho

e as suas: “Todos os Seus domésticos trazem vestidos forrados”

(Pr 31, 21). É por isso que não têm a recear o frio de

Jesus Cristo, branco como a neve, que os réprobos, inteiramente

nus e desprovidos dos merecimentos de Jesus Cristo e

da Santíssima Virgem, não poderão suportar.

207. 5) Ela lhes faz obter, enfim, a bênção do Pai celeste,

embora naturalmente não a devessem receber por não serem

os primogênitos, e apenas filhos adotivos. Com estas vestes

inteiramente novas, muito preciosas e muito perfumadas, e

com o corpo e a alma bem preparados e aprontados, aproximam-

se confiadamente do leito de repouso do Pai celeste.

Ele os entende e distingue pela voz, que é a do pecador; apalpa-

lhes as mãos, recobertas de peles; sente o aroma dos seus

vestidos; come com prazer o que Maria, a Mãe deles, lhe preparou.

E reconhecendo neles os méritos e o bom odor de seu

Filho e de sua Santa Mãe:

1º. Ele lhes dá uma dupla bênção. A bênção do orvalho

do Céu (Gn 27, 28), que é a graça divina, semente da glória:

“Deus abençoou-nos em Jesus Cristo com toda a bênção espiritual”

(Ef 1, 3). E a bênção da fecundidade da terra (Gn 27,

145 -

28), isto é, este Pai bondoso dá-lhes o pão quotidiano e uma

suficiente abundância dos bens deste mundo.

2º. Ele os constitui senhores dos outros seus irmãos, os

réprobos, embora esta primazia nem sempre se manifeste neste

mundo, que passa num momento (1 Cor 7, 31). Neste mundo

são muitas vezes os réprobos que dominam: “Os pecadores

se vangloriarão com discursos e se exaltarão” (Sl 93, 3-4).

“Vi o ímpio exaltado e elevado” (Sl 36, 35). Mas essa primazia

não deixa, por isso, de ser verdadeira, e aparecerá manifestamente

no outro mundo, pela eternidade afora. Lá os justos,

no dizer do Espírito Santo, “dominarão e imperarão sobre

as nações” (Sb 3, 8).

3º. Sua Majestade não se contenta só com abençoar as

suas pessoas e os seus bens, mas estende a sua bênção a quantos

os abençoarem, e a sua maldição a todos os que os amaldiçoarem

e perseguirem (Gn 27, 29).

II. Ela os sustenta no Corpo e na Alma

208. O segundo dever de caridade que a Santíssima Virgem

exerce para com os Seus fiéis servos é que os provê de tudo,

quanto ao corpo e quanto à alma. Dá-lhes vestes duplas, como

acabamos de ver. Alimenta-os com os manjares escolhidos da

mesa de Deus. Dá-lhes a comer o Pão de Vida que Ela própria

formou: “Meus filhos, diz-lhes Ela pela boca da Sabedoria,

enchei-vos dos meus frutos” (Eclo 24, 26), isto é, de Jesus, o

fruto de vida, que Eu dei à luz para vós. “Vinde, repete-lhes,

comei o meu Pão, que é Jesus, e bebei o Vinho do seu Amor,

que para vós preparei com o leite do meu peito” (Pr 9, 5; Ct

5, 1). Por Ela ser a tesoureira e a dispensadora do Altíssimo,

prepara uma boa parte, e a melhor parte, para alimentar e sustentar

os Seus filhos e servos. Sacia-os com o pão vivo, inebria-

146

os com o vinho que gera as virgens (Zc 9, 17). Leva-os aos

seios (Is 66, 12). Dá-lhes tanta facilidade em levar o jugo de

Jesus Cristo que quase não lhe sentem o peso, devido ao óleo

da salvação em que o faz apodrecer: “Seu jugo apodrecerá

por causa da abundância do azeite” (Is 10, 27).

III. Ela os guia

209. O terceiro bem que a Santíssima Virgem faz aos Seus

fiéis servos é que Ela os conduz e dirige segundo a vontade

de seu Filho. Rebeca conduzia seu filho Jacó e dava-lhe bons

conselhos, de tempos a tempos, quer para atrair sobre ele a

benção de seu pai, quer para o subtrair ao ódio e à perseguição

de Esaú, seu irmão. Maria, que é a estrela do mar, conduz

todos os Seus servos fiéis a bom porto; mostra-lhes os caminhos

da vida eterna e faz-lhes evitar os passos perigosos; levaos

pela mão nas veredas da justiça e sustenta-os, quando estão

prestes a cair; se caem, levanta-os; Mãe caridosa que é,

repreende-os quando erram, e chega mesmo, por vezes, a

castigá-los amorosamente. Poderá um filho obediente a Maria,

sua Mãe nutrícia e diretora esclarecida, perder-se nos caminhos

da eternidade? Como diz São Bernardo: “Seguindo-a

não te desvias!” (n. 174). Não receeis que um verdadeiro

filho de Maria seja enganado pelo espírito maligno e caia em

alguma heresia formal (n. 167). Onde é Maria que guia, não

há lugar nem para o demônio com as suas ilusões, nem para

os heréticos com as suas sutilezas: “Se Ela te sustém, não

cais” (n. 174).

IV. Ela os defende e protege

147 -

210. O quarto benefício que a Santíssima Virgem presta a

Seus filhos e fiéis servos é que os defende e protege contra os

seus inimigos. Rebeca, por meio dos seus cuidados e diligências,

livrou Jacó de todos os perigos em que se encontrava.

Livrou-o particularmente da morte que seu irmão Esaú lhe

teria provavelmente dado, como outrora Caim a seu irmão

Abel, tanto era o ódio e a inveja que lhe tinha. Maria, a boa

Mãe dos predestinados, abriga-os sob as asas da sua proteção,

como a galinha aos seus pintainhos. Fala-lhes, abaixa-se

até eles, condescende com as suas fraquezas. Cerca-os para os

livrar do falcão e do abutre, acompanha-os como “um exército

posto em linha de batalha” (Ct 6, 3). Um homem, rodeado por

um exército bem disciplinado de cem mil homens, poderá temer

os seus inimigos? (n. 50). Um fiel servo de Maria, cercado pela

sua proteção e pelo seu poder imperial, tem ainda menos a temer!

Esta boa Mãe e Poderosa Princesa dos Céus enviaria batalhões

de milhões de anjos em socorro de um dos Seus servos,

antes que se pudesse jamais dizer que um fiel servo de Maria,

que n'Ela confiara, tinha sucumbido ante a malícia, o número e

a força dos seus inimigos.

V. Ela intercede em seu favor

211. Enfim, o quinto e último grande bem que esta Mãe

amável presta a Seus fiéis devotos é que intercede por eles

junto de seu Filho, apaziguando-o com Seus rogos. Ela os

une a Ele com liames muito íntimos e nessa união os conserva.

Rebeca fez aproximar Jacó do leito de seu pai, e o bom

homem tocou-o, abraçou-o e até o beijou com alegria. Sentiu-

se contente e saciado com a carne bem preparada que Jacó

lhe trouxe, e tendo aspirado com grande prazer os preciosos

- 148

aromas das roupas dele, exclamou: “Eis que o perfume de

meu filho é semelhante ao aroma dum campo fecundo, que o

Senhor abençoou” (Gn 27, 27).

Esse campo fecundo, cujo perfume regozijou o coração

do pai, não é outro senão o das virtudes e méritos de Maria.

Ela é um campo cheio de graça, onde Deus Pai semeou, qual

grão de trigo dos eleitos, o seu Filho Único.

Oh! Como um filho perfumado pelo bom odor de Maria

é bem acolhido por Jesus Cristo, Pai do século futuro! (Is

9, 6). Como se une rápida e perfeitamente a Ele! Já o demonstramos

mais demoradamente (nn. 152-168; 184 e 191-200).

212. Além disto, depois de ter cumulado de favores os Seus

filhos e fiéis servos, depois de ter obtido a benção do Pai celeste,

e a união com Jesus Cristo, conserva-os em Jesus Cristo e

Jesus Cristo neles. Guarda-os e vela sempre por eles, para que

não venham a perder a graça de Deus, e a cair nas ciladas do

inimigo: “Detém os santos na sua plenitude”, e fá-los perseverar

até o fim, como vimos (nn. 173-182).

Eis, portanto, a explicação desta grande e antiga figura

da predestinação e da condenação, tão pouco conhecida e tão

cheia de mistérios.




São Luís Maria Grignion de Montfort, Tratado da Verdadeira Devoção à Santíssima Virgem

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