sexta-feira, 5 de abril de 2013
Imitação de Cristo II- Cap 9 - Da privação de toda consolação
1 - Não é dificultoso desprezar as consolações humanas, quando gozamos das divinas. Grande coisa, porém, e mui meritória, é poder estar sem consolação, tanto divina como humana, sofrendo de boa mente o desamparo do coração, sem em nada buscar-se a si mesmo, nem atender ao seu próprio merecimento. Que maravilha será estares alegre e devoto, quando te assiste a graça! De todos é almejada esta hora. E mui suave andar, levado pela graça de Deus. E que maravilha não sentir a carga aquele que é sustentado pelo Onipotente e acompanhado do guia supremo!
2 - Gostamos de ter qualquer consolação, e é penoso ao homem despojar-se de si mesmo. O glorioso mártir São Lourenço venceu o mundo em união com seu pai espiritual, porque desprezou todos os atrativos do século e sofreu com paciência, por amor de Cristo, que o separassem do Supremo Pontífice São Xisto a quem ele muito amava! Assim, com a amor de Deus, ele subjugou o amor da criatura, e ao alívio humano preferiu o beneplácito divino. Daí aprende tu a deixar, às vezes, por amor de Deus, um parente ou amigo querido. Nem tanto te aflijas se te abandonar algum amigo, sabendo que todos, finalmente, nos havemos de separar uns dos outros.
3 - Só com renhido e longo combate interior aprende o homem a dominar-se plenamente e pôr em Deus todo o seu afeto. Quando o homem confia em si, facilmente desliza nas consolações humanas. Mas o verdadeiro amigo de Cristo e fervoroso imitador de suas virtudes não se inclina às consolações nem busca tais doçuras sensíveis; antes, procura exercícios austeros e sofre por Cristo trabalhos penosos.
4 - Quando, pois, Deus te mandar consolação espiritual, recebe-a com ações de graças, mas lembra-te sempre que é mercê de Deus, e não merecimento teu. Com isto, porém, não te desvaneças, nem te entregues a excessiva alegria ou a vã presunção; sê antes mais humilde pelo dom recebido, mais prudente e timorato em tuas ações, pois passará aquela hora e voltará a tentação. Quando te for tirada a consolação, não desesperes logo, aguarda, pelo contrário, com humildade e paciência, a visita celestial; pois Deus é bastante poderoso para restituir-te maior graça e consolação. Isto não é novo nem estranho aos que são experientes nos caminhos de Deus; porque nos grandes santos e antigos profetas houve muitas vezes esta mudança.
5 - Por isso um deles, sentindo a presença da graça, exclamava: Eu disse em minha abundância: não serei abalado jamais (Sl 29,7). Sentindo, porém, retirar-se a graça, acrescenta: Desviastes de mim, Senhor, o vosso rosto, e fiquei perturbado (v.8). Entretanto não desespera, mas com mais instância roga ao Senhor, e diz: A vós, Senhor, clamarei, e ao meu Deus rogarei (v.9). Alcança, afinal, o fruto de sua oração e atesta ter sido atendido, dizendo: Ouviu-me o Senhor, e compadeceu-se de mim, o Senhor se fez meu protetor (v.11). Mas em quê? Convertestes, diz ele, meu pranto em gozo, e me cercastes de alegria (v.12). Se isto sucedeu aos grandes santos, não devemos desesperar nós outros, fracos e pobres, por nos sentirmos umas vezes com fervor, outras vezes com frieza porque vai e vem o espírito de Deus, segundo lhe apraz. Por isso diz o santo Jó: Senhor, visitais o homem na madrugada, e logo o provais (7,18).
6 - Em que posso, pois, esperar ou em que devo confiar, senão na grande misericórdia de Deus e na esperança da graça celestial? Porque, ou me assistem homens justos, irmãos devotos e amigos fiéis, ou livros santos e formosos tratados, ou cânticos e hinos suaves, tudo isso de pouco me serve e pouco me agrada, quando estou desamparado da graça e entregue à minha própria pobreza. Não há então melhor remédio que Deus.
7 - Nunca encontrei homem tão religioso e devoto, que não sofresse, às vezes, a subtração da graça e sentisse o arrefecimento do fervor. Nenhum santo foi tão altamente arrebatado e esclarecido que, antes ou depois, não fosse tentado. Porque não é digno da alta contemplação de Deus quem por Deus não sofreu alguma tribulação. Costuma vir primeiro a tentação, como sinal precursor da próxima consolação; porque aos provados pela tentação é prometido o celeste consolo. A quem tiver vencido, diz o Senhor, darei a comer o fruto da árvore da vida (Apc 2,7).
8 - Dá Deus a consolação, para fortalecer o homem contra as adversidades. Segue-se então a tentação, para que não se desvaneça a felicidade. O demônio não dorme, nem a carne já está morta; por isso, não cesses nunca de aparelhar-te para a peleja, porque à direita e à esquerda estão teus inimigos que nunca descansam.
Tomás de Kempis, Imitação de Cristo
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