quarta-feira, 23 de dezembro de 2020

MEDITAÇÃO V PARA OS DIAS DO ADVENTO - POR SANTO AFONSO MARIA DE LIGÓRIO

 


Formam servi accipiens.

Ele tomou a forma e a natureza de servo (Fl 2,7).

 

O Verbo eterno desce à terra para salvar o homem. Donde desce Ele? A sua saída é do mais alto dos céus, diz o Salmista. Desde do seio de Deus seu Pai, onde foi gerado desde a eternidade entre os esplendores dos Santos. — E aonde desce? desde ao seio duma Virgem, filha de Adão, isto é, a um lugar que, comparado ao seio de Deus, não é senão um horror; daí o cântico da Igreja: “Não tivestes horror do seio da Virgem”. Sim, porque o Verbo, estando no seio do Pai, é Deus como Pai, é imenso, onipotente, infinitamente feliz, soberano Senhor do universo, em tudo igual a Seu Pai; mas no seio de Maria, ele é criatura, é pequeno, fraco, padecente, servo, inferior a seu Pai: Ele tomou, diz S. Paulo, a forma de servo.

Contam de S. Aleixo, como grande prodígio de humildade, que sendo filho dum senhor romano, quis viver como servo na casa de seu pai. Mas que é a humildade desse Santo em comparação da de Jesus Cristo? Entre filho e servo do pai de S. Aleixo havia alguma diferença de condição; mas entre Deus e servo de Deus há uma distância infinita. Ademais, fazendo-se o Filho de Deus servo de seu Pai, se fez também, para lhe obedecer, servo de suas criaturas, isto é, de Maria e de José; pois o Evangelho atesta que lhes estava sujeito. Ainda mais, obedeceu até a Pilatos que o condenou à morte, pois que se submeteu a essa injusta sentença, obedeceu aos carrascos quando o quiseram flagelar, coroar de espinhos e crucificar; submeteu-se humildemente a todos e entregou-se às mãos de seus inimigos.

Oh! Deus, recusaremos diante disso pôr-nos ao serviço desse amável Senhor que para salvar-nos se sujeitou a tantas servidões dolorosas e humilhantes? E para não sermos servos desse Senhor tão grande e amante, consentiremos em tornar-nos escravos do demônio, que, longe de amar os seus servos, os odeia e tiraniza, os torna infelizes nesta e na outra vida? Ah! se cometemos essa loucura no passado, por que não saímos imediatamente dessa miserável escravidão? Coragem pois! Já que pela graça de Jesus Cristo fomos libertados da escravidão do inferno, abracemos logo e apertemos com amor as doces cadeias que nos fazem servos e amigos do Filho de Deus, e que nos obterão uma coroa no reino eterno entre os bem- aventurados do paraíso.

Afetos e Súplicas.

Meu amado Jesus, sois o Rei do céu e da terra; mas por amor de mim vos fizestes servo; obedecestes aos vossos próprios carrascos que vos despedaçaram as carnes, traspassaram a fronte e vos pregaram na cruz para morrerdes de dor. Adoro-vos como seu Senhor e meu Deus, e me acanho de aparecer diante de vós ao lembrar-me que por miseráveis satisfações rompi tantas vezes os vossos santos laços e vos disse em face que não queria mais servir-vos; sim, com justiça me lançais em rosto: Quebraste o meu jugo, rompeste os meus laços, e disseste: Não servirei. Mas, ó meu Salvador, o que me faz esperar o perdão, são os vossos méritos e a vossa bondade, que não despreza um coração contrito e humilhado: Não, meu Deus, não desprezeis um coração que se arrepende e se humilha. Meu Jesus, confesso que fiz mal desgostando-vos; reconheço que mereço mil infernos pelas ofensas que vos fiz; castigai-me como quiserdes, mas não me priveis da vossa graça e do vosso amor. Arrependo-me sobretudo de vos haver desprezado. Amo-vos de toda a minha alma. Tomo a resolução de no futuro servir e amar só a vós. Ah! pelos vossos méritos ligai-me pelas cadeias de vosso santo amor, e não permitais que eu as torne a sacudir de mim. Amo-vos sobre todas as coisas, ó meu Libertador, prefiro ser vosso servo a ser senhor de todo o universo: de que serve o mundo inteiro a quem está privado da vossa graça? Dulcíssimo Jesus, não permitais que me separe de vós, não permitais que me separe de vós. Essa graça eu vo-la peço e quero pedi-la sempre; rogo-vos me concedais hoje a graça de repetir-vos em toda a minha vida esta súplica: Meu Jesus, não permitais que me separe mais de vós e do vosso amor.

Essa graça peço também a vós, ó Maria minha Mãe; ajudai-me com vossa intercessão a não mais me separar de meu Deus.

Santo Afonso Maria de Ligório: Encarnação, Nascimento e Infância de Jesus Cristo

segunda-feira, 21 de dezembro de 2020

MEDITAÇÃO IV PARA OS DIAS DO ADVENTO - Por Santo Afonso Maria de Ligório

 


Ubi venit plenitudo temporis,

misit Deus Filium suum.

Quando se completaram os tempos,

Deus enviou o seu Filho (Gl 4,4).

 

Considera como Deus deixou passar quatro mil anos depois do pecado de Adão, antes de mandar à terra o seu Filho para resgatar o mundo. Que trevas e que males reinaram entretanto sobre a terra! O verdadeiro Deus não era conhecido nem adorado, a não ser num canto do mundo: em toda a parte reinava a idolatria; adoravam-se como deuses os demônios, os animais e as pedras. Mas admiremos aqui a sabedoria divina: difere a vinda do Redentor para torná-la mais apreciada dos homens; difere-a para melhor se conhecer a malícia do pecado, a necessidade do remédio e a graça do Salvador. Se Jesus Cristo tivesse vindo logo após o pecado de Adão, não se teria podido apreciar a grandeza desse benefício. Agradeçamos, pois, a bondade de Deus para conosco. Agradeçamos, pois, a bondade de Deus para conosco, fazendo-nos nascer depois de cumprida a grande obra da redenção.

Eis que é chegada essa época feliz chamada a plenitude dos tempos: Quando chegou a plenitude dos tempos, Deus enviou seu Filho para resgatar os que estavam sob o jugo da lei. Essa expressão marca a plenitude da graça que o Filho de Deus veio comunicar aos homens pela redenção. O anjo é enviado como embaixador na cidade de Nazaré à Virgem Maria para lhe anunciar a vinda do Verbo, que quer encarnar-se em seu seio. O anjo a saúda chamando-a Cheia de graça e Bendita entre as mulheres. Ouvindo esses louvores a humilde Virgem, escolhida para ser a Mãe do Filho de Deus, perturba-se em sua profunda humildade; mas o anjo a anima e diz-lhe ter ela achado graça junto de Deus, isto é, aquela graça da qual resultaria a paz entre Deus e os homens, e a reparação das ruínas devidas ao pecado. Revela-lhe depois o nome de Jesus ou Salvador, que deve dar a seu Filho, e acrescenta que esse Filho é o próprio Filho de Deus, que deve resgatar o mundo e assim reinar sobre os corações dos homens. Enfim Maria consente em ser a Mãe de tão nobre filho: Faça-se em mim segundo a vossa palavra; e ao mesmo instante o Verbo eterno se faz carne e torna-se homem: E o Verbo se fez carne!

Rendamos graças a esse Filho e também a essa Mãe que, consentindo em ser a Mãe de tal Filho, consente em ser a Mãe de nossa salvação e por isso mesmo uma Mãe de dores: desde

então ela se resigna a ser mergulhada num abismo de dores, que lhe devia custar a sua qualidade de Mãe dum Filho vindo ao mundo para sofrer e morrer pelos homens.

 

Afetos e Súplicas.

Ó Verbo divino feito homem por mim, embora vos veja tão humilhado e feito criança no seio de Maria, confesso-vos e reconheço-vos por meu Senhor e Rei, mas Rei de amor. Meu caro Salvador, já que viestes a este mundo revestir-vos da nossa miserável carne para reinar sobre os nossos corações, ah! vinde estabelecer o vosso reino também no meu coração sujeito outrora ao domínio dos vossos inimigos, mas que agora é vosso, como espero; quero que seja ele sempre vosso e que vós sejais de hoje em diante o seu único Senhor: Reinai no meio de vossos inimigos. Os outros reis reinam pela força das armas; vós ao contrários vindes reinar pela força do amor, por isso não vindes com pompas reais, não vindes revestido de púrpura e ouro, ornado de cetro e coroa nem rodeado de exércitos de soldados. Nasceis num estábulo, pobre, abandonado e sereis colocado num presépio sobre um pouco de palha, porque assim quereis começar a reinar sobre os corações. Ah! meu Rei Infante, como pude revoltar-me tantas vezes contra vós, e viver tanto tempo na vossa inimizade, na privação da vossa graça, quando vós para obrigar-me a amar-vos depusestes a vossa majestade divina e vos humilhastes tanto que tomastes a forma duma criança numa gruta, depois a dum operário numa oficina, e, enfim, a dum condenado na cruz? Oh! Feliz de mim se agora que saí, como espero, da escravidão de Lúcifer, me deixar dominar sempre por vós e por vosso amor! Ó Jesus, meu Rei, que sois tão amável e que amais tanto as almas, tomai posse de toda a minha alma, eu vo-la dou sem reserva. Aceitai que ela vos sirva sempre e que vos sirva por amor: a vossa majestade merece ser temida, mas a vossa bondade merece ainda mais ser amada. Ó meu Rei, vós sois e se- reis para sempre o meu único amor; e o único temor que terei será o de desgostar-vos. Assim o espero. Ajudai-me com a vossa graça.

Minha amada Soberana, Maria, vós haveis de obter-me a graça de ser fiel a esse Rei querido de minha alma.

 

Santo Afonso Maria de Ligório: Encarnação, Nascimento e Infância de Jesus Cristo

sexta-feira, 11 de dezembro de 2020

MEDITAÇÃO III PARA OS DIAS DO ADVENTO - Por Santo Afonso Maria de Ligório


MEDITAÇÃO III.
Sic Deus dilexit mundum,
ut Filium suum unigenitum daret.

Deus amou de tal o modo o mundo,
que lhe deu seu Filho unigênito (Jo 3,16).


Considera como o Padre eterno, dando-nos o Filho por Redentor, por vítima e preço do nosso resgate, não podia dar-nos motivos mais fortes de esperança e amor, para inspirar-nos confiança e obrigar-nos a amá-lo. Dando-nos o seu Filho, diz S. Agostinho, não sabe e não tem mais que dar-nos. Quer que nos aproveitemos desse dom de valor infinito, para obtermos a salvação eterna de todas as graças de que precisamos; pois achamos em Jesus Cristo tudo o que podemos desejar: achamos a luz, a força, a paz, a confiança, o amor e a glória eterna, sendo Jesus Cristo um dom que encerra todos os dons que possamos pedir e desejar.


De fato diz-nos o apóstolo: Como não nos dará também com ele todas as coisas? Tendo-nos Deus dado seu Filho dileto, seu unigênito Filho, a fonte e o tesouro de todos os bens, podemos ainda temer uma recusa de sua parte, seja qual for a graça que lhe pedirmos? Pela vontade de Deus, ele foi feito sabedoria para nós, e justiça, e santificação, e redenção. Deus no-lo deu, a nós ignorantes e cegos, para ser nossa sabedoria e nossa luz, e nos dirigir na via da salvação; a nós, dignos do inferno, para ser nossa justiça, e nos permitir aspirar ao paraíso; a nós, pecadores, para ser nossa santificação, e nos conduzir à santidade; a nós, enfim, escravos do demônio, para ser nossa redenção, e nos restituir a liberdade dos filhos de Deus. Numa palavra, em Jesus Cristo fomos enriquecidos de todos os bens e de todas as graças; basta que as peçamos por seus méritos. Em todas as coisas fostes enriquecidos nele... de maneira que nada falta em graça alguma a vós.


E esse dom que Deus nos fez de seu Filho, é um dom feito a cada um de nós, pois que ele o deu todo inteiro a cada um, como se tivesse dado a ele só; de sorte que cada um de nós pode dizer: Jesus Cristo é todo meu; o seu corpo e o seu sangue são meus; a sua vida, as suas dores, a sua morte, todos os seus méritos são meus. Eis por que S. Paulo dizia: Ele me amou e entregou-se por mim; e cada um de nós pode dizer o mesmo: O meu Redentor me amou e levou esse seu amor até se dar todo a mim.

Afetos e Súplicas.

Ó Deus eterno, quem nos poderia jamais ter feito esse dom de valor infinito, senão vós que sois um Deus de amor infinito? E que mais podereis fazer, ó meu Criador, para inspirar-nos confiança em vossa misericórdia, e obrigar-nos a amar-vos? Senhor, tenho-vos pago com ingratidão; mas dissestes, pelo Apóstolo, “que tudo contribui em benefício dos que vos amam”. Sejam pois quais forem o número e a enormidade de meus pecados, não quero que destruam a minha confiança em vossa bondade, mas quero que me sirvam para mais me humilhar quando receber alguma afronta ; ah! bem merece outras afrontas e outros desprezos quem teve o atrevimento de ofender-vos, Majestade infinita! Quero que me sirvam para suportar com mais paciência as cruzes que me enviardes, para vos servir e honrar com mais zelo, a fim de reparar as injúrias que vos tenho feito. Sim, meu Deus, quero lembrar-me sempre dos desgostos que vos dei, a fim de louvar tanto mais a vossa misericórdia, e de me abrasar sempre mais de amor por vós, que me procurastes quando vos fugia, e me tendes feito tanto bem depois de haver recebido de mim tantos ultrajes. Senhor, espero que já me tenhais perdoado; arrependo-me e quero arrepender-me sempre de minhas ofensas. Quero ser-vos grato, compensando com meu amor a ingratidão que tenho tido para convosco; mas vós haveis de ajudar-me; a vós peço a graça de executar essa resolução. Fazei-vos amar, ó meu Deus, para a vossa glória, fazei-vos amar muito por um pecador que muito vos ofendeu. Meu Deus, meu Deus, como poderia eu cessar ainda de amar-vos, e renunciar novamente ao vosso amor?


Ó Maria, minha Rainha, socorrei-me; conheceis minha fraqueza: fazei que a vós me recomende sempre que o demônio pretender separar-me de Deus. Minha mãe, minha esperança, socorrei-me.

 

Santo Afonso Maria de Ligório: Encarnação, Nascimento e Infância de Jesus Cristo

sábado, 5 de dezembro de 2020

MEDITAÇÃO II PARA OS DIAS DE ADVENTO - POR SANTO AFONSO MARIA DE LIGÓRIO




MEDITAÇÃO II. 

Et Verbum caro factum est. 

E o Verbo se fez carne (Jo 1,14). 

O Senhor mandou S. Agostinho escrever no coração de S. Maria Madalena de Pazzi estas palavras: O Verbo se fez carne. 

Ah! peçamos também ao Senhor ilumine o nosso espírito e nos faça compreender por que excesso e prodígio de amor o Verbo eterno, o Filho de Deus, se fez homem por amor de nós! 

A Santa Igreja fica como que atônita ao contemplar esse grande mistério: Considerai as vossas obras, exclama ela com o profeta, e fiquei estupefata. Se Deus houvesse criado mil outros mundos, mil vezes maiores e mais belos que este, essa obra seria certamente infinitamente menor do que a Encarnação do Verbo. Ele manifestou o poder de seu braço. Na obra da Encarnação foi necessária a onipotência e a sabedoria infinita dum Deus, para fazer que a natureza humana se unisse a uma pessoa divina, e que uma pessoa divina se humilhasse até tomar a natureza humana. Assim, Deus fez-se homem, e o homem tornou-se Deus; e estando a divindade do Verbo unida à alma e ao corpo de Jesus Cristo, todas as ações desse Homem-Deus foram divinas; divinas foram suas preces, divinos os seus sofrimentos, divinos seus vagidos, divinas as suas lágrimas, divinos os seus passos, divinos os seus membros, divino o seu sangue, esse sangue do qual queria fazer um banho de salvação para nos purificar de todos os nossos pecados, e um sacrifício de valor infinito para aplacar a justiça do Pai irritado com os homens. 

E que são esses homens? Criaturas miseráveis, ingratas, rebeldes. E para salvar esses indignos, um Deus se faz homem, sujeita-se às misérias humanas! Ele sofre, morre! Humilhou-se, fazendo-se obediente até à morte, até a morte da cruz. 

Ó santa fé! Se a fé não no-lo garantisse, quem poderia jamais acreditar que um Deus de infinita majestade se humilhou ao ponto de tornar-se um verme da terra como nós, para nos salvar a custo de tantas penas e ignomínias, a custo duma morte tão cruel e vergonhosa? 

Ó graça! ó poder do amor! exclama S. Bernardo. Ó graça que homem algum jamais poderia imaginar, se Deus mesmo não pensasse em no-la fazer! Ó amor divino, que ninguém jamais poderia compreender! Ó misericórdia! ó caridade infinita, que só podem nascer duma bondade infinita!

Afetos e Súplicas. 

Ó alma, corpo e sangue de meu Jesus, eu vos adoro e agradeço; vós sois a minha esperança, vós sois o preço pago para resgatar-me do inferno que tantas vezes mereci. — Ah! e que vida infeliz e desesperada me esperaria na eternidade, se não tivésseis pensando em salvar-me com vossos sofrimentos e a vossa morte! Como pois almas remidas por vós com tanto amor, sabendo isso, podem viver sem amar-vos, e desprezar essa graça que lhes alcançastes a custo de tantas penas? E eu não sabia tudo isso? e pude ofender-vos, e ofender-vos tantas vezes? Mas, repito, o vosso sangue é a minha esperança. Reconheço, meu Salvador, a grandeza do mal que vos fiz. Oh! oxalá tivesse morrido antes mil vezes! Oxalá vos tivesse sempre amado! Agradeço o tempo que me dais ainda para o fazer. 

Espero empregar o resto da minha vida e toda a eternidade em louvar sem cessar as vossas misericórdias a meu respeito. Após os meus pecados, eu merecia mais trevas, e me destes mais luzes; merecia ser abandonado por vós, e correstes atrás de mim chamando-me com voz mais terna; merecia que meu coração ficasse mais endurecido, e vós o enternecestes e tocastes de compunção. Sim, por vossa graça sinto uma grande dor das ofensas que vos fiz, sinto em mim um vivo desejo de vos amar, e estou firmemente resolvido a antes perder tudo do que a vossa amizade, sinto por vós um amor que me faz detestar tudo o que vos desgosta; e essa dor, esse desejo, essa resolução, esse amor, quem mos dá? sois vós que mos dais por vossa misericórdia; é isso por um sinal, ó Jesus, de que me tendes perdoado, um sinal de que me amais e quereis a todo o custo a minha salvação. Quereis que me salve, e eu quero salvar-me, quero-o sobretudo para vos agradar. Vós me amais e eu também vos amo. Mas amo-vos pouco, dai-me mais amor: estou obrigado a amar-vos mais do que os outros, porque tenho recebido de vós graças mais especiais; aumentai pois em mim as chamas do vosso santo amor.

SS. Virgem Maria, fazei por vossa intercessão que o amor de Jesus consuma e destrua em mim todos os afetos estranhos a Deus. Atendeis a todos, atendei também a mim: obtende-me o amor e a perseverança.

Santo Afonso Maria de Ligório, Nascimento e Infância de Jesus Cristo.

quarta-feira, 2 de dezembro de 2020

MEDITAÇÃO I PARA OS DIAS DO ADVENTO - SANTO AFONSO MARIA DE LIGÓRIO




MEDITAÇÃO I.

Et incarnatus est de Spiritu Sancto...
Et homo factus est.
Ele se encarnou pela virtude do Espírito
Santo, e se fez homem (Simb.)


Considera que Deus criou o primeiro homem para ser por ele servido e amado sobre a terra e para esse fim o enriqueceu de luzes e graças. Mas o homem ingrato revoltou-se contra Deus, recusou-lhe a obediência que lhe devia por justiça e reconhecimento; e em castigo da sua rebelião, esse infeliz se viu com toda a sua posteridade privado da graça de Deus e excluído para sempre do paraíso. Em conseqüência desse pecado perderam-se todos os homens. Envoltos nas mais espessas trevas, viviam todos na sombra da morte. O demônio os dominava, e o inferno devorava continuamente multidão inumerável da vítimas.


À vista do estado miserável a que estavam reduzidos, Deus se compadeceu e resolveu salvá-los. Mas como? Não enviará um anjo, um serafim; mas para manifestar ao mundo o amor imenso que tem a esses ingratos vermes, enviará seu próprio Filho para se fazer homem e revestir-se da carne dos pecadores. Com seus sofrimentos em com sua morte, o Verbo encarnado satisfará à divina justiça pelos pecados dos homens e libertá-los-á assim da morte eterna; e reconciliando-os com seu Pai, lhes obterá a graça divina e os tornará dignos de en-trar no reino celeste.


Considera aqui, dum lado, os males extremos em que o pecado precipita a alma privando-a da amizade de Deus e do paraíso, e condenando-a a uma eternidade de penas. Doutro lado considera o amor infinito que Deus nos mostrou na grande obra da encarnação do Verbo: o unigênito Filho de Deus virá pois sacrificar sua vida pela mão dos carrascos; morrerá numa cruz, num abismo de dores e ignomínias, para nos obter o per-dão dos nossos pecados e a salvação eterna. Ao contemplar esse grande mistério e esse excesso de amor de Deus, cada um deveria exclamar: Ó bondade infinita! ó misericórdia infinita! ó amor infinito! um Deus fez-se homem para morrer por mim!


Afetos e Súplicas.

Mas como é possível, ó meu Jesus, que eu tenha tantas vezes renovado voluntariamente com os ultrajes que cometi contra vós, essa horrível ruína causada pelo pecado e reparada com a vossa morte? Custou-vos tanto o salvar-me; e eu tantas vezes quis perder-me, perdendo a vós, o Bem infinito! Uma coisa reanima a minha confiança: vós dissestes que, quando o pecador, que vos voltou as costas, se converte, não deixais de abraçá-lo: Convertei-vos a mim... e eu me voltarei a vós. Dissestes ainda: Se alguém me abrir a porta, entrarei nele. Eis-me, Senhor, sou um desses rebeldes, um ingrato e traidor, que vos voltou muitas vezes as costas e vos expulsou de sua alma; mas hoje arrependo-me do fundo do coração de vos haver as-sim ultrajado e desprezado a vossa graça. Arrependo-me, e amo-vos sobre todas as coisas. Está aberta a porta do meu coração; entrai, pois, ó Jesus, mas entrai para não mais sair. Sei que vós não vos afastareis jamais, se eu vos não tonar a expulsar; mas é isso que temo; e é essa a graça que vos peço e espero pedir-vos sempre, de antes morrer do que tornar-me culpado dessa nova e extrema ingratidão. Meu caro Redentor, as ofensas que vos fiz, tornaram-me indigno de vos amar; mas peço-vos pelos vossos méritos me concedais o dom do vosso santo amor. Para isso fazei-me conhecer o grande bem que sois, o amor que me tendes, e tudo quanto fizestes para me obrigar a amar-vos. Ah! meu Deus e meu Salvador, não me deixeis viver mais na ingratidão para com tão grande bondade. Não quero mais abandonar-vos, meu Jesus. Muito vos tenho ofendido; é justo que empregue o resto da minha vida em amar-vos e agradar-vos. Meu Jesus! meu Jesus! ajudai-me; ajudai um pecador que deseja amar-vos.


Ó Maria, minha Mãe, podeis tudo junto de Jesus, porque sois sua Mãe; dizei-lhe que me perdoe; dizei-lhe que me prenda com seu santo amor. Vós sois a minha esperança, em vós confio.


Santo Afonso Maria de Ligório, Nascimento e Infância de Jesus Cristo.

André seguiu Jesus até à cruz... (Festa de Santo André, Apóstolo - 30/11)

No dia de Santo André, impressionou-me ver este santo prostrar-se subitamente à vista da cruz, sem conseguir conter a sua alegria e comunicando-a com palavras apaixonadas. 

 «Cruz boa», chama-lhe: cruz útil, honrosa, agradável; a cruz é todo o seu bem, o único bem pelo qual se deixa tocar. «Tanto tempo desejada», pois desejava-a com um ardor que fazia com que o tempo se lhe prolongasse. «Cruz ardentemente amada»: não há amor que não seja acompanhado de preocupação, e este santo procurava a cruz com a pressa e o temor de um homem que percebe não estar a encontrar, que não consegue encontrar imediatamente; e, quando a encontra, dir-se-ia que encontrou um tesouro, pois a felicidade que demonstra é a de um homem possuído por um amor extremo. «Buscada sem descanso»: eis a nossa regra, e foi por isso que ele mereceu encontrá-la. «Enfim preparada para o meu desejo ardente», palavras que assinalam um enorme desejo. 

Ele tinha de amar muito a Jesus Cristo para encontrar tanto prazer na cruz. Em geral, os homens são amados pelos bens que possuem; amar as suas misérias por amor a eles, porém, é coisa inaudita, pois o que espanta é que não sejam odiados pelas suas misérias. Não há amor maior que o de dar a vida pelos irmãos (cf Jo 15,13); mas este sacrifício tem graus, porque morrer com esta alegria, com esta pressa, é prova de um amor incomparável. Que fé!

 

Fonte: Evangelho Quotidiano

sexta-feira, 3 de julho de 2020

Deus amou tanto o mundo... (São Pedro Julião Eymard)


Jesus Cristo é o amor de Deus humanizado, oferecido ao homem de todas as maneiras, sob todas as formas e em todos os estados, para lhe provar o amor de seu Criador.
Como duvidar que Deus nos ama quando o Verbo nos veio dizer por sua palavra, por seu olhar, por seu Coração, por tudo quanto a criatura humana é capaz de sentir e de compreender? 
Eis o que Ele nos veio afirmar: "SIC DEUS DILEXIT: DEUS AMOU TANTO O MUNDO!"
E Ele, o Verbo, nos ama, ama-nos como Deus, isto é, infinitamente! E cada um de nós deve dizer como São Paulo: - Dilexit me! ELE ME AMOU, A MIM, A MIM SOMENTE, E PARA ME PROVAR O SEU AMOR ENTREGOU-SE POR MIM, POR MIM SÓ, À MORTE DA CRUZ! 
Com quanta maior razão fez Ele tudo o mais, as coisas visíveis e invisíveis, para mim, unicamente para mim! 
E o homem não ama a Deus! O ofende! Deus, porém, o cumula de bens apesar dos seus pecados, dos pecados de todos os dias, a fim de chamá-lo novamente a Si, fazê-lo render-se ao amor!

São Pedro Julião Eymard - Flores da Eucaristia

sábado, 20 de junho de 2020

“Porque eu te amo, Maria” - Santa Teresinha do Menino Jesus



Quisera cantar, Maria, porque te amo,
Porque, ao teu nome, exulta meu coração
E porque, ao pensar em tua glória suprema,
Minh’alma não sente temor algum.
Se eu viesse a contemplar o teu fulgor sublime
Que supera de muito o dos anjos e santos,
Não poderia crer que sou tua filha
E, então, diante de ti, baixaria meus olhos.
Para que um filho possa amar sua mãe,
Que ela chore com ele e partilhe suas dores…
Pois tu, querida Mãe, nestas plagas de exílio,
Quanto pranto verteste a fim de conquistar-me!…
Ao meditar tua vida escrita no Evangelho,
Ouso te contemplar e me acercar de ti;
Nada me custa crer que sou um de teus filhos,
Pois te vejo mortal e, como eu, sofredora.
Quando o anjo te anunciou que serias a Mãe
Do Deus que reinará por toda a eternidade,
Eu te vi preferir, Maria – que mistério! –,
O inefável, luzente ouro da Virgindade.
Compreendo que tua alma, Imaculada Virgem,
Seja mais cara a Deus que o próprio céu divino;
Compreendo que tua alma, Humilde e doce Vale,
Possa conter Jesus, o grande Mar do Amor!…
Como te amo, Maria, ao declarar-te serva
Do Deus que conquistaste por tua humildade,
Tornou-te onipotente essa virtude oculta.
Ela ao teu coração trouxe a Trindade santa
e o Espírito de Amor, cobrindo-te em sua sombra,
O Filho, igual ao Pai, encarnou-se em teu seio…
Inúmeros serão seus irmãos pecadores,
Uma vez que Jesus é o teu primeiro filho!…
Ó Mãe muito querida, embora pequenina,
Trago em mim, como tu, o Todo-Poderoso
e nunca tremo ao ver em mim tanta fraqueza.
O tesouro da Mãe é possessão do Filho,
e sou tua filha, ó Mãe estremecida.
Tua virtude e amor não são, de fato, meus?
E quando ao coração me vem a Hóstia santa,
Teu Cordeiro, Jesus, crê que repousa em Ti!…
Tu me fazes sentir que não é impossível
Os teus passos seguir, Rainha dos eleitos,
Pois o trilho do céu nos tornaste visível,
Vivendo cada dia as mais simples virtudes.
Quero ficar pequena ao teu lado, Maria,
Por ver como são vãs as grandezas do mundo.
Ao ver-te visitar a casa de Isabel,
Aprendo a praticar a caridade ardente.
Aí escuto absorta, ó Rainha dos anjos,
O canto celestial que jorrou de teu peito;
Ensinas-me a cantar os divinos louvores
E a só me gloriar em Jesus Salvador.
Tuas frases de amor caíram como rosas
Que iriam perfumar os séculos futuros.
O Todo-Poderoso em ti fez maravilhas,
Cujas bênçãos, na prece, quero usufruir.
Quando o bom São José ignorava o milagre
Que intentavas velar com tua humildade,
Tu o deixaste chorar aos pés do Tabernáculo
Que esconde o Salvador e sua eterna Beleza!…
Maria, amo esse teu eloqüente silêncio,
Que soa para mim como um doce concerto,
Melodia cantando a grandeza e o poder
De um coração que espera ajuda só dos céus…
E, mais tarde, em Belém, ó José e Maria,
Rejeitados os vi por todas as pessoas.
Não os recebeu ninguém em sua hospedaria,
Que só os grandes acolhe e não pobres migrantes…
Para os grandes o hotel, portanto é num estábulo
Que a Rainha do céu dá à luz o Filho-Deus.
Minha querida Mãe que acho tão amável,
Como te vejo grande em lugar tão pequeno!…
Quando vejo o Eterno envolvido em paninhos
E ouço o fraco vagir desse Verbo divino,
Ó Mãe querida, não invejo mais os anjos,
Porquanto o Onipotente é meu amado Irmão!…
Como te amo, Maria, a ti que, em nossas terras,
Fazes desabrochar essa divina Flor!…
Como te amo escutando os pastores e os magos
Guardando, com amor, tudo no coração!…
Amo ao ver-te também, entre as outras mulheres,
Os passos dirigindo ao Templo do Senhor.
Amo-te apresentando o nosso Salvador
Àquele santo ancião que O tomou em seus braços.
Em princípio, sorrindo, escuto o canto dele,
Logo, porém, seu tom me faz cair em pranto,
Pois, sondando o porvir com olhar de profeta,
Simeão te apresentou uma espada de dores.
Rainha do martírio, até a noite da vida
Essa espada de dor traspassará teu peito.
Cedo tens de deixar o teu país natal,
Fugindo do furor de um rei cheio de inveja.
Jesus cochila em paz nas dobras de teu véu;
José te vem pedir para partir depressa
E logo se revela tua obediência,
Partindo sem atraso ou considerações.
Lá na terra do Egito, ó Maria, parece
Que manténs, na pobreza, o coração feliz.
Uma vez que Jesus é a mais bela das pátrias,
Com Ele tendo o céu, pouco te importa o exílio…
Mas, em Jerusalém, uma amarga tristeza,
Como um imenso mar, vem inundar teu peito:
Por três dias Jesus se esconde de teu amor;
Agora é exílio, sim, em todo o seu rigor.
Tu O descobres enfim, e alegria te inunda
Vendo teu belo filho encantando os doutores
E lhe dizes: “Por que, meu filho, agiste assim?
Eis que eu mais o teu pai chorando te buscávamos!”
Então o Filho de Deus responde (oh! que mistério!)
À sua terna Mãe que os braços lhe estendia:
“Por que me procurais?… Não sabeis, talvez,
Que das obras do Pai devo me ocupar?”
O Evangelho nos diz que, crescendo em saber,
A Maria e José, Jesus obedecia.
E o coração me diz com que infinda ternura
O Menino a seus pais assim se submetia.
Só agora compreendo o mistério do templo:
Palavras de meu Rei envoltas em mistério.
Teu doce Filho, Mãe, quer que sejas exemplo
De quem O busca em meio à escuridão da fé.
Já que o supremo Rei do Céu quis que sua mãe
Se afundasse na noite e em angústias interiores,
Então, Maria, é um bem sofrer assim na terra?
Sim, sofrer com amor é o mais puro prazer.
Tudo quanto me deu Jesus pode tomar;
Dize-lhe que comigo nunca se preocupe…
Que se esconda, se quer; consinto em esperar
Até o dia sem poente em que se apaga a fé.
Sei que, em Nazaré, ó Mãe, cheia de graça,
Longe das ambições, viveste pobremente,
Sem arrebatamento ou êxtase e milagre
Que te adornasse a vida, ó Rainha do Céu.
Na terra é muito grande o bando dos pequenos
Que, sem temor, a ti elevam seu olhar.
É o caminho comum que te apraz caminhar,
Incomparável Mãe, para guiá-los ao céu!
Enquanto espero o céu, ó minha Mãe querida,
Contigo hei de viver, seguir-te cada dia.
Contemplando-te, Mãe, sinto-me extasiada
Ao descobrir em ti abismos só de amor.
Teu olhar maternal expulsa meus temores,
Ensina-me a chorar e também a sorrir.
Em vez de desprezar gozos puros e santos,
Tu os queres partilhar, digna-te a abençoá-los.
Em Caná, ao notar a angústia do casal
Que não sabe ocultar a falta de vinho,
Preocupada contas tudo a teu Jesus,
Esperando de Seu poder a solução.
Parece que Jesus recusa teu pedido
Dizendo: “Isto que importa a mim e a ti, Mulher?”
Mas, lá em seu coração, Ele te chama Mãe
E por ti Ele opera o primeiro milagre…
Pecadores, um dia, ouviam a palavra
Daquele que no céu deseja recebê-los.
Junto deles te vejo, ó Mãe, sobre a colina,
E alguém diz a Jesus que tu pretendes vê-Lo.
Então o Filho de Deus, diante da turba inteira,
Mostrou a imensidão de Seu amor por nós
Dizendo: “O meu irmão e minha Mãe quem é?
Não é outro senão quem faz minha vontade”.
Virgem Imaculada, a mais terna das mães,
Ao escutar Jesus tu não ficaste triste
Mas te alegraste, pois Ele nos fez saber
Que nossa alma, aqui embaixo, é Sua família.
Tu te alegras por ver que Ele nos dá Sua vida,
E os tesouros sem fim de Sua divindade!…
Como, pois, não te amar, ó Mãe terna e querida,
Ao ver tamanho amor e tão grande humildade?
Tu nos amas, ó Mãe, como Jesus nos ama
E consentes, por nós, em afastar-se dele.
Amar é tudo dar; depois, dar-se a si mesmo.
Isto provaste ao te tornares nosso apoio.
Conhecia Jesus tua imensa ternura
E os segredos de teu coração maternal.
Ele nos deixa a ti, do pecador Refúgio,
Quando abandona a cruz para esperar-nos no céu.
Tu me apareces, Mãe, no cimo do Calvário,
De pé, junto da cruz, qual padre ao pé do altar,
E ofertas, para aplacar a justiça do Pai,
Teu querido Jesus, esse doce Emanuel…
Um profeta já disse, ó Mãe tão desolada:
“Não há dor neste mundo igual à tua dor”!
Ficando aqui no exílio, ó Rainha dos mártires,
Todo o sangue que tens no coração nos dás.
O teu único asilo é a casa de São João;
Filho de Zebedeu deve substituir Jesus!…
É o detalhe final que vem nos evangelhos
E não se fala mais da Rainha dos céus.
Mas, Mãe querida, teu silêncio tão profundo
Não revela tão bem a nós que o Verbo eterno
Quer cantar Ele próprio o louvor de tua vida
Para poder encantar teus filhos lá no céu?
Logo, logo ouvirei essa doce harmonia;
Cedo irei para o céu a fim de lá te ver.
Tu que, no amanhecer da vida, me sorriste,
Vem me sorrir de novo, ó Mãe! Já se faz noite!…
Não tenho mais temor do brilho de tua glória;
Contigo já sofri, o que desejo agora
É cantar, em teu colo, ó Mãe, porque é que te amo
E mil vezes dizer-te que sou tua filha! 

(Santa Teresinha do Menino Jesus: “Porque eu te amo, Maria”)

terça-feira, 14 de abril de 2020

O perfeito amor - Santa Teresa D'Ávila

1. Muito me desviei; mas importa tanto o que fica dito, que não me culpará quem o entender. Voltemos agora ao amor que é bom e lícito que nos tenhamos: aquele que digo ser puramente espiritual. Não sei se sei o que digo, pelo menos, parece-me não ser preciso falar muito dele, porque poucos o têm. A quem o Senhor o tiver dado, louve-O muito, porque deve ser de grandíssima perfeição. Quero, pois, dizer alguma coisa dele. Porventura será de algum proveito, porque, pondo diante dos nossos olhos a virtude, afeiçoa-se a ela quem a deseja e pretende ganhar. 
2. Praza a Deus eu o saiba entender, quanto mais dizer, pois creio que nem sei qual é espiritual, nem quando se lhe mistura o sensível, nem sei como me ponho a falar disto. É como quem ouve falar ao longe e não entende o que dizem; assim sou eu; algumas vezes não devo entender o que digo e o Senhor permite que seja bem dito. Se de outras vezes for disparate, é o mais natural em mim não acertarem nada. 
3. Parece-me agora a mim que, quando Deus chega uma pessoa ao claro conhecimento do que é o mundo, e que coisa é o mundo, e que há outro mundo e a diferença que vai de um ao outro, e que um é eterno e o outro sonhado; ou que coisa é amar ao Criador ou à criatura (isto conhecido por experiência, que são coisas bem diferentes o pensar e crer), e ver e experimentar o que se ganha com um e se perde com o outro; e o que ébser Criador e o que é ser criatura, e outras muitas coisas que o Senhor ensina a quem se quer prestar a ser ensinado por Ele na oração, ou a quem ama Sua Majestade, essa pessoa ama muito diferentemente dos que não chegamos ainda aqui. 
4. Poderá ser, irmãs, que vos pareça que tratar disto é descabido, e digais que estas coisas que digo já todas as sabeis. Praza a Deus que assim seja e que saibais isto do modo que faz ao caso: impresso nas entranhas; pois, se o sabeis, vereis que não minto ao dizer que, a quem Deus traz a este ponto, tem este amor. Estas pessoas, que Deus faz chegar a este estado, são almas generosas, almas reais; não se contentam com amar coisa tão ruim como estes corpos, por formosos que sejam, por muitas graças que tenham, bem que lhes agrade à vista e louvem o Criador. Mas, para aí se deter, não. Digo "deter-se", de maneira a que, por estes motivos, lhe tenham amor. Parecer-lhes-ia que amam coisa sem substância e que se empregam em querer bem a uma sombra; teriam vergonha de si mesmos e não teriam cara, sem grande confusão sua, para dizer a Deus que O amam. 
5. Dir-me-eis: "esses tais não saberão amar nem retribuir a amizade que lhes tiverem". Pelo menos, pouco se lhes dá que lha tenham. E ainda que num repente a natureza os leve, algumas vezes, a se alegrarem por serem amados, em voltando a si, vêem que é disparate, a menos que se trate de pessoas que lhes hão-de aproveitar à alma com sua doutrina e oração. Todas as outras vontades as cansam, pois entendem que nenhum proveito trazem consigo, antes lhes poderia até causar dano, não porque as deixam de agradecer e retribuir, encomendando a Deus aqueles que lhes têm essa amizade. Mas consideram-no como se esses que as estimam deixassem a paga a cargo do Senhor, pois entendem que d'Ele é que procede isto de serem amadas por outras pessoas. Parece-lhes que em si não têm por que se lhes queira, e assim, logo lhes parece que lhes querem porque Deus lhes quer, e deixam a Sua Majestade o pagar e Lhe suplicam que o faça, e com isto ficam livres, como se isto em nada as tocasse. E, olhando bem as coisas, a não ser com as pessoas que digo que nos podem fazer bem para ganhar virtudes, penso algumas vezes na grande cegueira que trazemos neste querer que nos queiram! 
6. Agora notem que, quando queremos o amor de alguma pessoa, sempre se pretende algum interesse de proveito ou satisfação nossa, e estas pessoas perfeitas já têm debaixo dos pés todos os bens e regalos que o mundo lhes pode dar; já estão de maneira que contentamentos, ainda mesmo que os queiram, a modo de dizer, não os podem ter, a não ser que seja com Deus ou em tratar de Deus. Que proveito, pois, lhes pode vir de serem amadas? 
7. Quando se lhes representa esta verdade, riem-se de si mesmas, da preocupação que algum tempo tiveram, se era ou não paga a sua amizade. Embora a vontade seja boa, logo nos é muito natural querer a paga. Vindo esta a cobrar-se, a paga é em palha; que tudo é ar e sem tomo que o vento leva. Porque, ainda quando muito nos quisessem, que é isto que nos fica? Assim, se não é para proveito da alma com as pessoas que tenho dito, porque vem a ser de tal sorte o nosso natural que, se não há algum amor, logo se cansa, tanto se lhes dá de ser queridas como não. Parecer-vos-á que estas tais não querem a ninguém nem sabem querer senão a Deus. Querem muito mais, e com verdadeiro amor, e com mais paixão e amor mais proveitoso; enfim, é amor. E estas tais almas são sempre afeiçoadas a dar muito mais do que a receber; até com o mesmo Criador lhes acontece isto. Digo que este merece o nome de amor, pois estas outras afeições baixas têm-lhe usurpado o nome. 
8. Parecer-vos-á também que, se não amam pelas coisas que vêem, a que se afeiçoam? Verdade é que amam o que vêem e afeiçoam-se ao que ouvem; mas estas coisas que vêem são estáveis. Logo estes, se amam, passam além dos corpos, põem os olhos nas almas e olham se há nelas coisas para se amar. Se as não há, mas vêem algum princípio ou disposição para que, se aprofundarem, achem ouro nesta mina, têm-lhe amor, não lhes dói o trabalho; não há coisa custosa que uma alma destas não faça de boa vontade por aquela a quem quer bem, porque deseja continuar a amá-la e sabe muito bem que, se ela não tem bens espirituais e ama muito a Deus, é impossível. E digo que é impossível, por mais que a obrigue e se mate, querendo-lhe, e lhe faça todas as boas obras que puder e possua reunidas em si todas as graças da natureza; a vontade não terá força, não poderá permanecer firme. Já sabe e tem experiência do que é tudo; não lhe farão pagar em moeda falsa. Vê que não são um para o outro e que é impossível perdurar o quererem-se mutuamente, porque é amor que se há-de acabar com a vida. Se a outra não guarda a lei de Deus e entende que não O ama, hão-de ir para lugares diferentes. 
9. E este amor, que só aqui dura, uma alma, a quem o Senhor já infundiu verdadeira sabedoria, não o estima em mais do que vale, nem em tanto. Porque, para os que gostam de gozar coisas do mundo, deleites e honras e riquezas, alguma coisa valerá, se for rica e tiver partes para dar passatempo e recreação; mas, a quem tudo isto aborrece, já pouco ou nada se lhe dará disto. Ora, pois, aqui, - se tem amor -, é a paixão para fazer com que essa alma ame a Deus, para ser por Ele amada; porque sabe, como digo, que, de outro modo, não pode perdurar em lhe querer. É amor muito à própria custa; não deixa de fazer tudo o que pode para que lhe aproveite. Perderia mil vidas por um pequeno bem seu. Oh! precioso amor, que vai imitando o Capitão do Amor, Jesus, 
nosso Bem!

Caminho de Perfeição, O Perfeito Amor, Santa Teresa D'Ávila, p.45-49. 
Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...