segunda-feira, 18 de março de 2013

Tratado da Verdadeira Devoção à Santíssima Virgem - Capítulo Segundo



VERDADES FUNDAMENTAIS
DA DEVOÇÃO À VIRGEM MARIA



60. Até aqui dissemos alguma coisa sobre a necessidade
que temos da Devoção à Santíssima Virgem. Faz-se necessário
dizer agora em que consiste esta mesma Devoção. É o que
farei, com a ajuda de Deus, depois de propor algumas verdades
fundamentais, donde se deduzirá a grande e sólida Devoção que
quero descobrir.

Artigo Primeiro

Jesus Cristo é o Fim Último da Devoção à Virgem Maria
61. Primeira Verdade. Jesus Cristo, nosso Salvador, verdadeiro
Deus e verdadeiro homem, deve ser o fim último de
todas as devoções, de outro modo seriam falsas e enganadoras.
Jesus é o alfa e o ômega, o princípio e o fim de todas as
coisas. Nós não trabalhamos - como diz o Apóstolo - senão
para tornar cada homem perfeito em Jesus Cristo. Porque só
n'Ele habita toda a plenitude da Divindade, e todas as outras
plenitudes de graça, virtude e perfeição, e só n'Ele fomos abençoados
com toda a bênção espiritual. Ele é o nosso único
Mestre que nos deve ensinar, o único Senhor de quem devemos
depender, o único Chefe a quem nos devemos unir, o
único Modelo ao qual nos devemos assemelhar, o único Médico
que nos há de curar, o único Pastor que nos deve alimentar,
o Caminho único que nos deve conduzir, a única Verdade
em que devemos crer, a única Vida que nos deve animar,
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o único Tudo, que nos deve bastar em todas as coisas. Não
nos foi dado, debaixo do Céu, outro Nome pelo qual devamos
ser salvos, senão o Nome de Jesus.
Deus não constituiu outro fundamento da nossa salvação,
perfeição e glória senão Jesus Cristo. Todo edifício que
não estiver erguido sobre esta pedra firme está construído sobre
areia movediça e, mais cedo ou mais tarde, acabará, infalivelmente,
por cair.
Todo fiel que não estiver unido a Jesus, como o
sarmento à cepa da vinha, cairá, secará, e só servirá para ser
lançado ao fogo. Fora de Jesus Cristo tudo é extravio, mentira,
iniqüidade, inutilidade, morte e condenação.
Mas, se estamos em Jesus Cristo e Jesus Cristo em
nós, não há condenação a temer. Porque assim nem os anjos
do Céu, nem os homens da Terra, nem os demônios do inferno,
nem qualquer outra criatura nos pode prejudicar, pois não
nos poderá separar da caridade de Deus, que está em Jesus
Cristo (Rm 8, 39). Por Jesus Cristo, com Jesus Cristo, em
Jesus Cristo podemos tudo: dar toda honra e glória ao Pai, na
unidade do Espírito Santo, tornar-nos perfeitos e ser, para o
nosso próximo, um bom odor de vida eterna.
62. Se, pois, nós estabelecermos a sólida Devoção da
Santíssima Virgem, não será senão para mais perfeitamente
estabelecer a de Jesus Cristo, e para dar às almas um meio
fácil e seguro de encontrar Jesus Cristo. Se a Devoção à
Santíssima Virgem afastasse de Jesus Cristo, deveríamos repeli-
la como uma ilusão do demônio. Mas muito pelo contrário,
como já o fiz ver e voltarei a mostrar mais adiante, esta
Devoção é-nos indispensável para encontrar perfeitamente
Jesus Cristo, para o amar ternamente e servir com fidelidade.
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63. Aqui volto-me um momento para Vós, ó meu amável
Jesus, para queixar-me amorosamente à Vossa Divina Majestade,
de que a maior parte dos cristãos, mesmo os mais instruídos,
não saiba a ligação necessária entre Vós e Vossa Santa
Mãe. Vós estais sempre com Maria, Senhor, e Ela está sempre
convosco, nem pode estar sem Vós, pois deixaria de ser o
que é. Maria está de tal modo transformada em Vós pela graça
que já não vive, já nem existe: só Vós, meu Jesus, é que
viveis e reinais n'Ela, mais perfeitamente que em todos os
anjos e bem-aventurados. Ah! Se os homens conhecessem a
glória e o amor que recebeis desta admirável criatura, teriam
sobre Vós e sobre Ela sentimentos muito diferentes dos que
têm. Ela Vos está tão intimamente unida que seria mais fácil
separar a luz do Sol ou o calor do fogo. Digo ainda mais:
seria mais fácil separar de Vós todos os anjos e santos, do que
Maria Santíssima. Ela Vos ama, pois, mais ardentemente e Vos
glorifica mais perfeitamente que todas as outras criaturas juntas.
64. Depois disto, meu amável Mestre, não é coisa espantosa
e lamentável ver a ignorância e as trevas de todos os
homens deste mundo a respeito da Vossa Santa Mãe? Não
falo tanto dos idólatras e pagãos que não Vos conhecem e, por
isso, não se preocupam em conhecê-la. Nem falo sequer dos
heréticos e cismáticos, que não cuidam de ser devotos da Vossa
Santa Mãe, já que estão separados de Vós e de Vossa Igreja.
Falo dos cristãos católicos, e mesmo dos doutores entre os
católicos, que não Vos conhecem nem à Vossa Santa Mãe,
senão duma maneira especulativa, seca, estéril e indiferente,
embora façam profissão de ensinar a verdade aos outros. Es-
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tes senhores só raramente falam da Vossa Mãe e da devoção
que se lhe deve ter, porque dizem temer que se abuse dela e
que se faça a Vós injúria, honrando demasiadamente Vossa
Santa Mãe. Um devoto da Santíssima Virgem fala da Devoção
a esta boa Mãe duma forma terna, forte e persuasiva, como
dum meio seguro e sem ilusão, dum caminho curto e sem
perigo, duma via imaculada e sem imperfeição e dum maravilhoso
segredo para Vos encontrar e amar perfeitamente. Mas,
se esses senhores vêem ou ouvem alguém muitas vezes falar
assim, levantam-se contra ele e apresentam mil falsas razões
para lhe provar que não se deve falar tanto da Santíssima Virgem,
que há grandes abusos nessa Devoção, que é preciso
empenhar-se em destruí-los e em falar mais de Vós, de preferência,
a levar os povos à Devoção a Maria, a quem já amam
bastante.
Por vezes falam da Devoção à Vossa Santa Mãe, ó Jesus,
não para a estabelecer e propagar, mas para destruir os
abusos que dela se fazem. Estes senhores não têm piedade
nem Devoção terna para convosco, por não terem nenhuma a
Maria. Consideram o Rosário, o escapulário, o Terço, como
devoções de efeminados, próprias para ignorantes, e sem as
quais nos podemos salvar. E se lhes cai em mãos algum devoto
da Santíssima Virgem, que reze o Terço ou se entregue a
qualquer outra prática de devoção para com Ela, depressa lhe
mudarão o coração e o pensar. Aconselham que se reze, em
lugar do Terço, os sete salmos. Em lugar da Devoção a Nossa
Senhora, recomendar-lhe-ão a Devoção a Jesus Cristo.
Ó meu amável Jesus, terão estas pessoas o Vosso espírito?
Dão-Vos gosto procedendo deste modo? Agradar-Vos-á
quem não empregue todos os esforços para agradar à Vossa
Mãe, com receio de Vos desagradar? Por acaso, a Devoção à
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Vossa Santa Mãe impedirá a Vossa? Atribui-se Ela a si mesma
a honra que lhe prestam? Forma Ela um partido à parte? É
Ela uma estrangeira sem ligação alguma convosco? Desagradar-
Vos-á quem procure agradar-lhe a Ela? Separa-se ou afasta-
se do Vosso Amor quem a Ela se dá e a ama?
65. No entanto, meu amável Mestre, se tudo o que acabo
de dizer fosse verdade, a maioria dos sábios, para castigo do
seu orgulho, não poderia afastar mais as almas da Devoção à
Vossa Santa Mãe, e não lhe poderia votar mais indiferença.
Livrai-me Senhor, livrai-me dos seus sentimentos e práticas.
Dai-me parte nos sentimentos de gratidão, de estima, de respeito
e de amor que Vós tendes para com Vossa Santa Mãe,
para que Vos ame e glorifique mais na medida em que Vos
imitar e seguir de mais perto.
66. Como se até aqui ainda nada tivesse dito em louvor de
Vossa Mãe Santíssima concedei-me a graça de a louvar dignamente,
apesar de todos os Seus inimigos que são os Vossos.
Fazei que clame com os santos: “Não julgue receber a misericórdia
de Deus aquele que ofende sua Santa Mãe!”
67. Para obter da Vossa misericórdia uma Verdadeira Devoção
à Vossa Mãe Santíssima, e para inspirá-la a todo o
mundo, fazei que Vos ame ardentemente. Recebei para isso a
oração inflamada que Vos dirijo com Santo Agostinho e com
os Vossos verdadeiros amigos:
“Ó meu Jesus, Vós sois o Cristo, meu Pai Santo, meu
Deus misericordioso, meu Rei infinitamente grande. Vós sois
o meu Bom Pastor, meu único Mestre, meu Auxílio todo bondade,
meu Bem-amado de arrebatadora beleza, meu Pão da
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Vida, meu Sacerdote eterno. Vós sois o meu Guia para a Pátria,
minha Luz verdadeira, minha Doçura toda Santa, meu
Caminho direto. Vós sois a minha Sabedoria sublime, minha
Simplicidade pura, minha pacífica Concórdia. Vós sois toda
a minha Defesa, minha preciosa Herança, minha eterna Salvação.
Ó Jesus Cristo, Mestre adorável, porque é que eu amei
ou desejei em toda a minha vida outra coisa fora de Vós,
Jesus, meu Deus?! Onde estava eu quando não pensava em
Vós?! Que o meu coração, ao menos a partir deste momento,
só arda em desejos de Vós, Senhor Jesus; que só para Vos
amar ele se dilate. Desejos da minha alma, correi doravante:
já basta de delongas! Apressai-vos a atingir o fim porque
aspirais, buscai em verdade Aquele que procurais!
Ó Jesus, seja anátema quem não Vos amar! Seja repleto
de amargura! Ó doce Jesus, sêde o amor, as delícias e o
objeto da admiração de todo coração dignamente consagrado
à Vossa glória. Deus do meu coração e minha herança,
divino Jesus, que o meu coração esvazie-se do seu próprio
espírito, para que Vós possais viver em mim, acendendo em
minha alma a brasa ardente do Vosso Amor, que seja o princípio
de um incêndio todo divino. Arda incessantemente sobre
o altar do meu coração, inflame o mais íntimo do meu
ser, e abrase as profundezas da minha alma. Que no dia da
minha morte eu compareça diante de Vós todo consumido no
Vosso Amor! Amém. Assim seja.”
Embora o texto original traga esta admirável oração
de Santo Agostinho em latim, quis o editor pô-la em português,
a fim de que as pessoas que não saibam latim a possam
rezar também todos os dias para pedir o Amor de Jesus, que
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buscamos por intermédio da divina Maria.
Artigo Segundo
Pertencemos a Jesus e a Maria na qualidade de Escravos
68. Segunda Verdade. Devemos concluir do que Jesus Cristo
é para nós, que - como diz São Paulo - não somos nossos,
mas inteiramente d'Ele, como Seus membros e escravos, comprados
pelo preço infinitamente caro de todo o seu sangue (1
Cor 6, 19-20). Antes do Batismo pertencíamos ao diabo como
seus escravos.
Ao receber este sacramento, tornamo-nos verdadeiros
escravos de Jesus Cristo. Doravante já não devemos viver,
trabalhar e morrer senão para este Homem-Deus (Rm 7, 4),
glorificando-o em nosso corpo (Rm 12, 1) e fazendo-o reinar
em nossa alma. Somos, pois sua conquista, seu povo de aquisição
e sua herança. É pela mesma razão que o Espírito Santo
nos compara:
- Às árvores plantadas ao longo das águas da graça, no
campo da Igreja, e que devem dar frutos a seu tempo (Sl 1, 3).
- Aos ramos duma vinha de que Jesus é a cepa, e que
devem dar boas uvas (Jo 15, 5).
- A um rebanho de que Jesus Cristo é o pastor, e que se
deve multiplicar e dar leite (Jo 10, 1).
- A uma boa terra de que Deus é o agricultor, e na qual
a semente se multiplica, produzindo trinta, sessenta ou cem
por um (Mt 13, 3-8).
Jesus Cristo amaldiçoou a figueira estéril e condenou
o servo inútil, que não tinha feito render o seu talento (Mt 21,
19; Mt 25, 24-30). Tudo isto prova que Jesus Cristo quer receber
algum fruto das nossas pobres pessoas, a saber: as nossas
obras, porque estas só a Ele pertencem: “Criados para as
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boas obras em Cristo Jesus” (Ef 2, 10).
Mostram estas palavras do Espírito Santo que Jesus Cristo é
o único princípio e deve ser o fim último de todas as nossas
boas obras. Mostram ainda que o devemos servir, não somente
como servos assalariados, mas como escravos de amor.
Explico-me.
69. Neste mundo, há duas maneiras de pertencer a outra
pessoa e de depender da sua autoridade: a simples servidão e
a escravidão, que fazem dum homem, respectivamente, um
servo ou um escravo. Pela servidão, comum entre os cristãos,
um homem compromete-se a servir outro durante um certo
tempo, mediante determinada paga ou certa recompensa. Pela
escravidão, um homem depende inteiramente de outro, por
toda a vida, e deve servir o seu senhor sem pretender paga
nem recompensa alguma, como um dos seus animais, sobre o
qual o dono tem direito de vida e de morte.
70. Há três espécies de escravidão: uma natural, outra forçada
e outra voluntária. Todas as criaturas são escravas de
Deus da primeira forma: “Ao Senhor pertence a Terra e tudo
o que nela está contido” (Sl 23, 1). Os demônios e os réprobos
pertencem à segunda categoria, os justos e os santos à
terceira. A escravidão voluntária é mais perfeita e mais gloriosa
para Deus, que olha ao coração, que pede o coração,
que se chama o Deus dos corações (I Sm 16, 7; Sl 72, 26; Pr
23, 26), ou da vontade amorosa. Por esta escravidão, de fato,
escolhe-se Deus e o seu serviço acima de todas as coisas, ainda
mesmo que a natureza não obrigasse a isso.
71. Há diferenças radicais entre um servo e um escravo:
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1º. Um servo não dá ao seu senhor tudo o que é nem
tudo o que possui, nem tudo o que pode adquirir por si mesmo
ou por outro. Mas o escravo dá-se inteiramente, com tudo
o que possui ou pode vir a adquirir, sem exceção alguma.
2º. O servo exige a paga dos serviços que presta ao
senhor, enquanto o escravo nada pode exigir, por maior que
seja a sua aplicação, a sua habilidade, e a força com que trabalha.
3º. O servo pode deixar o senhor quando quiser ou,
pelo menos, quando tiver expirado o tempo do serviço, mas o
escravo não tem o direito de fazer isso.
4º. O senhor do servo não tem sobre ele nenhum direito
de vida e de morte, e se o matasse - como a um dos seus
animais de carga - cometeria um homicídio injusto. Ao contrário,
o senhor do escravo tem, por lei, direito de vida e de
morte sobre ele, de modo que o pode vender a quem quiser,
ou matar, como faria ao seu cavalo.
5º. Finalmente, o servo está só por algum tempo ao
serviço dum senhor, mas o escravo, para sempre.
72. Nada há, entre os homens, que mais nos faça pertencer
a outrem do que a escravidão. Do mesmo modo nada há entre
os cristãos que nos faça pertencer mais absolutamente a Jesus
Cristo e à sua Santa Mãe do que a escravidão voluntária. Isto
é conforme o exemplo do próprio Jesus, que tomou a forma
de escravo por nosso amor (Fl 2, 7), e da Santíssima Virgem
que se disse serva e escrava do senhor (Lc 1, 38). O Apóstolo
chama-se, com certa ufania, “servo de Cristo” (Rm 1, 1; Gl 1,
10; (Fl 1,1; Tt 1,1). Por várias vezes os cristãos são chamados,
na Sagrada Escritura, de “servos de Cristo”. Segundo a
justa observação de um grande homem, a palavra servo significava
outrora apenas escravo porque ainda não havia servos
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como os de hoje. Os senhores só eram servidos por escravos
ou libertos. O Catecismo do Concílio de Trento, para que não
reste dúvida alguma sobre a nossa condição de escravos de
Jesus Cristo, exprime-se por um termo que não se presta a
equívocos, chamando-nos “escravos de Cristo”.
73. Posto isto, digo que devemos ser de Jesus Cristo e servilo,
não só como mercenários, mas como escravos amorosos.
Estes, por efeito de um grande amor, entregam-se e dão-se ao
seu serviço, na qualidade de escravos, só pela honra de lhe pertencer.
Antes do Batismo éramos escravos do demônio. Tornounos
o Batismo escravos de Jesus Cristo (Rm 6, 22). Portanto, os
cristãos têm de ser escravos ou do demônio ou de Jesus Cristo.
74. O que digo de modo absoluto a respeito de Jesus Cristo,
digo-o relativamente da Santíssima Virgem. Jesus Cristo
escolheu-a por companheira indissolúvel da sua vida, da sua
morte, da sua glória e poder no Céu e na Terra. Por isso e por
graça deu-lhe, em relação à sua Majestade, todos os mesmos
direitos e privilégios que Ele possui por natureza: “Tudo o
que convém a Deus por natureza, dizem os santos, convém a
Maria por graça...”. Deste modo, segundo este ensinamento,
têm ambos os mesmos súditos, servos e escravos, visto que os
dois não têm senão uma só vontade e um só poder.
75. Podemos, portanto, segundo o parecer dos santos e de
vários homens ilustres, dizer-nos e fazer-nos escravos amorosos
da Santíssima Virgem, para deste modo sermos mais
perfeitamente escravos de Jesus Cristo. A Virgem é o meio de
que nosso Senhor se serviu para vir a nós; é também o meio
de que nos devemos servir para ir a Ele. Pois Ela não é como
as outras criaturas que, se a elas nos prendêssemos, nos pode65
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riam afastar de Deus em lugar de nos aproximar d'Ele. Mas a
mais forte inclinação de Maria é unir-nos a Jesus seu Filho,
e a mais forte inclinação do Filho é que se vá a Ele por sua
Mãe. Isto honra-o e agrada-lhe tanto como honraria e agradaria
a um rei alguém que, para se tornar mais perfeitamente
seu vassalo e escravo, se fizesse escravo da rainha. É por isso
que os Santos Padres, e São Boaventura com eles, dizem que
“a Virgem Santíssima é o caminho para ir a Nosso Senhor”.
76. Além disso, se, como já disse, a Santíssima Virgem é a
rainha e soberana do Céu e da Terra, não tem Ela tantos súditos
e escravos quantas são as criaturas? Dizem-no Santo
Anselmo, São Bernardino e São Boaventura: “Ao poder de
Deus tudo está submisso, mesmo a Virgem, e eis que ao poder
da Virgem está tudo submisso, até o próprio Deus”. Não será
razoável que entre tantos escravos por força os haja também
por amor, que de boa vontade e na qualidade de escravos escolham
Maria por sua soberana? O quê?! Os homens e os
demônios têm seus escravos voluntários e Maria não os há de
ter? Um rei terá a peito que a rainha, sua companheira, possua
escravos, com direito de vida e de morte sobre eles, porque
a honra e o poder do rei são a honra e o poder da rainha.
Pode-se então acreditar que Nosso Senhor, que partilhou, como
o melhor dos filhos, todo o poder com sua Santa Mãe, ache
mal que Ela tenha escravos? Terá Ele menos respeito e amor
à sua Mãe do que teve Assuero a Ester e Salomão a Betsabé?
Quem ousaria dizê-lo ou pensá-lo sequer?
77. Mas onde me leva a minha pena? Por que é que me
detenho aqui em provar uma coisa tão evidente? Se não querem
que alguém se diga escravo da Santíssima Virgem, que
importa? Que se faça e se diga escravo de Jesus Cristo! É o
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mesmo que sê-lo da Santíssima Virgem, visto que Jesus é o
fruto e a glória de Maria. Faz-se isto de maneira perfeita por
meio da Devoção de que mais adiante falaremos.
Artigo Terceiro
Devemos esvaziar-nos do que há de mau em nós
78. Terceira Verdade. As nossas melhores ações são ordinariamente
manchadas e corrompidas pelo mau fundo que há
em nós. Quando se deita água límpida e clara numa vasilha
que não tem bom cheiro, ou vinho numa pipa cujo interior
está azedado por outro vinho, que teve anteriormente, a água
clara e o vinho bom ficam estragados e ganham facilmente o
mau cheiro. Do mesmo modo, quando Deus infunde em nossa
alma, corrompida pelo pecado original e atual, as suas graças
e orvalhos celestes, ou o vinho delicioso do seu Amor,
assim também os Seus dons são ordinariamente manchados e
estragados pelo mau fermento e mau fundo que o pecado deixou
em nós. Os nossos atos, mesmo as virtudes mais sublimes,
disso se ressentem. É, pois, da mais alta importância,
para adquirir a perfeição - que só se alcança pela união com
Jesus Cristo - esvaziarmo-nos do que há de mau em nós. Doutra
forma, Nosso Senhor, que é infinitamente puro e que odeia
infinitamente a menor mancha que vê na alma, afastar-nos-á
de Seus olhos e não se unirá a nós.
79. Para nos despojar de nós mesmos é preciso:
Em primeiro lugar, conhecer bem, pela luz do Espírito
Santo, o nosso fundo mau, a nossa incapacidade para qualquer
bem útil à salvação, a nossa fraqueza em todas as coisas,
a nossa permanente inconstância, a nossa indignidade de toda
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a graça, a nossa iniqüidade em toda a parte. O pecado dos
nossos primeiros pais arruinou-nos a todos quase por completo,
azedou-nos, corrompeu-nos, fez-nos inchar como o fermento
faz à massa em que é lançado. Os pecados atuais que
cometemos, quer mortais, quer veniais, embora tenham sido
perdoados, aumentaram-nos a concupiscência, a fraqueza, a
inconstância e corrupção, deixando maus vestígios na nossa
alma. O nosso corpo é tão corrupto que é chamado pelo Espírito
Santo corpo de pecado (Rm 6, 6; Sl 50, 7), concebido no
pecado, alimentado no pecado, capaz de todo pecado e sujeito
a mil enfermidades. Corrompe-se de dia a dia, e gera somente
sarna, vermes e corrupção. A nossa alma, unida ao corpo,
tornou-se tão carnal que chega a ser chamada carne: “Toda
a carne tinha corrompido o seu caminho” (Gn 6, 12). A nossa
única herança é o orgulho e a cegueira de espírito, o endurecimento
do coração, a fraqueza e a inconstância da alma, a
concupiscência, a revolta das paixões e as doenças do corpo.
Somos, naturalmente, mais orgulhosos que os pavões, mais
apegados à Terra que os sapos, piores que os bodes, mais invejosos
que as serpentes, mais gulosos que os porcos, mais
coléricos que os tigres e mais preguiçosos que as tartarugas,
mais fracos que caniços e mais inconstantes que os cata-ventos.
De nosso só temos o nada e o pecado, e só merecemos a ira de
Deus e o inferno eterno.
80. Depois disto, será para admirar que Nosso Senhor tenha
dito que quem o quisesse seguir devia renunciar a si mesmo
e odiar a sua própria alma? (Mt 16, 24). Que aquele que
amasse a sua alma a perderia, e o que a odiasse a salvaria? (Jo
12, 25). Esta Sabedoria infinita, que não impõe mandamentos
sem razão, não nos manda odiarmo-nos a nós mesmos senão
porque somos sumamente dignos de ódio. Nada há tão digno
de amor como Deus, e nada tão digno de ódio como nós.
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Podemos, portanto, conforme os sentimentos dos Santos
e de muitos homens célebres, dizer-nos e tornar-nos
escravos de amor de Maria Santíssima, para ser, assim,
mais perfeitamente escravos de Jesus Cristo.
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81. Em segundo lugar, para nos despojar de nós mesmos, é
preciso morrer todos os dias. Isto quer dizer que é preciso
renunciar às operações das potências da nossa alma e dos sentidos
do nosso corpo, ou seja: temos de ver como se não víssemos,
de ouvir como se não ouvíssemos, de nos servir das
coisas deste mundo como se delas não nos servíssemos (1
Cor 7, 29-31). É a isto que São Paulo chama de morrer todos
os dias (1 Cor 15, 31). “Se o grão de trigo cai à Terra e não
morre, permanece só e não produz fruto” (Jo 12, 24). Se não
morrermos para nós mesmos, e se as nossas devoções mais
santas não nos levam a esta morte necessária e fecunda, não
daremos fruto que valha. Porque então as nossas devoções
tornar-se-ão inúteis, todas as nossas boas obras serão manchadas
pelo amor próprio e pela nossa vontade própria, o que
fará com que Deus abomine os maiores sacrifícios e as melhores
ações que possamos fazer. E, nesse caso, encontrarnos-
emos com as mãos vazias de virtudes e méritos na hora da
nossa morte, e não teremos sequer uma centelha de Puro Amor,
pois este só é dado às almas mortas para si mesmas e cuja vida
está oculta com Jesus Cristo em Deus (Cl 3, 3).
82. Em terceiro lugar, é preciso escolher, dentre todas as
devoções à Santíssima Virgem, aquela que nos leva mais a
esta morte para nós próprios, porque é esta a melhor e a mais
santificante. Não se julgue, de fato, que tudo o que brilha é
ouro, que tudo o que é doce é mel, e que tudo o que é fácil e
praticado pela maior parte das pessoas é o mais santificante.
Na natureza há segredos para fazer operações naturais
em pouco tempo, econômica e facilmente. Na ordem da graça
existem também segredos para fazer operações sobrenaturais
em pouco tempo, suavemente e facilmente, tais como: despo-
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jar-se de si mesmo, encher-se de Deus e tornar-se perfeito.
A prática que quero revelar é um desses segredos de
graça, desconhecido pela maior parte dos cristãos, conhecido
por poucas almas piedosas, praticado e apreciado por menos
ainda. Para começar a descobrir esta prática, eis uma quarta
verdade, que é uma conseqüência da terceira.
Artigo Quarto
Temos necessidade de um mediador
junto ao Mediador mesmo, que é Jesus Cristo
83. Quarta Verdade. É mais perfeito, porque mais humilde,
não nos aproximarmos diretamente de Deus, mas servimo-nos
de um mediador. Visto que a natureza está tão corrompida, como
acabo de mostrar, é certo que todas as nossas boas obras serão
manchadas ou terão pouco peso diante de Deus para o levar a
unir-se a nós, a ouvir-nos, se nos apoiarmos nos nossos próprios
trabalhos, esforços e preparações para chegarmos até Deus e lhe
agradarmos. Não foi sem motivo que Deus nos deu mediadores
junto da sua Divina Majestade. Ele viu-nos indignos e incapazes,
teve piedade de nós, e, para nos dar acesso às suas misericórdias,
proporcionou-nos intercessores poderosos junto da sua
grandeza. Deste modo, negligenciar esses intermediários, aproximar-
nos diretamente da própria Santidade sem intercessão alguma,
é falta de humildade e de respeito para com um Deus tão
Santo. É fazer menos caso deste Rei dos reis do que se faria dum
rei ou príncipe da Terra, que não se abordaria sem auxílio dum
amigo que falasse por nós.
84. Nosso Senhor é nosso Advogado e Medianeiro de Redenção
junto de Deus Pai. É por Ele que devemos orar, com
toda a Igreja triunfante e militante. É por Ele que temos aces-
so junto da Suprema Majestade, não devendo nunca apresentar-
nos diante dela senão sustentados e revestidos de Seus
méritos, como Jacó, que se cobriu com peles de cabrito para
receber a bênção de seu pai Isaac.
85. Mas, não teremos necessidade dum mediador junto do
próprio Medianeiro? Será tão grande a nossa pureza que possamos
unir-nos diretamente a Ele, e por nós mesmos? Não é
Ele Deus, em tudo igual a seu Pai e, por conseguinte, o Santo
dos santos, tão digno de respeito como o Pai? Pela sua infinita
caridade tornou-se a nossa garantia e o nosso medianeiro
junto de Deus, seu Pai, para aplacá-lo e pagar-lhe o que lhe
devíamos. Mas será isso uma razão para termos menos respeito
e temor à sua majestade e santidade?
Digamos, pois, abertamente - com São Bernardo -, que
temos necessidade dum mediador junto do mesmo Medianeiro,
e que Maria Santíssima é a pessoa mais capaz de desempenhar
esta função caridosa. Foi por Ela que nos veio Jesus
Cristo; é por Ela que devemos ir a Ele.
Se receamos ir diretamente a Jesus Cristo, nosso Deus,
por causa da sua grandeza infinita, ou da nossa miséria, ou
ainda dos nossos pecados, imploremos ousadamente o auxílio
e a intercessão de Maria, nossa mãe. Ela é boa e terna;
nada tem de austero ou de repulsivo, nada de demasiado sublime
e brilhante. Contemplando-a, vemos a nossa própria
natureza.
Ela não é o Sol, que pela vivacidade dos seus raios
poderia cegar-nos por causa da nossa fraqueza. Ela é bela e
doce como a Lua (Ct 6, 9), que recebe a luz do Sol e a abranda
a fim de adaptá-la à nossa pequenez. É tão caridosa que
não repele nenhum dos que pedem a sua intercessão, por mais
pecador que seja. Pois, como dizem os santos, desde que o
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mundo é mundo, nunca se ouviu dizer que alguém que tenha
recorrido à Santíssima Virgem, com confiança e perseverança,
tenha sido por Ela desamparado.
Ela é tão poderosa que nunca foi desatendida nas suas
súplicas. Basta que se apresente diante de seu Filho para lhe
pedir alguma coisa: Ele imediatamente a atende e acolhe, amorosamente
vencido pelas orações da sua mui querida Mãe,
que o portou ao seio e o amamentou.
86. Tudo isto é tirado de São Bernardo e de São Boaventura.
Pelo que, segundo eles, temos de subir três degraus para chegar
até Deus: o primeiro, que está mais perto de nós e mais
conforme à nossa capacidade, é Maria; o segundo é Jesus
Cristo, e o terceiro é Deus Pai. Para ir a Jesus é preciso ir a
Maria: Ela é a nossa Medianeira de Intercessão. Para ir ao
Eterno Pai é preciso ir a Jesus: nosso Medianeiro de Redenção.
Ora, pela Devoção que a seguir indicarei, observa-se perfeitamente
esta ordem.
Artigo Quinto
É-nos muito difícil conservar a
Graça e os Tesouros recebidos de Deus
87. Quinta Verdade. É muito difícil, atendendo à nossa fraqueza
e fragilidade, conservar em nós as graças e os tesouros
recebidos de Deus:
1º. Porque temos este tesouro, mais valioso que o Céu
e a Terra, em vasos frágeis (2 Cor 4, 7); num corpo corruptível,
numa alma fraca e inconstante, que por um nada se perturba
e abate.
88. 2º. Porque os demônios, que são ladrões muito finos,
querem apanhar-nos de improviso, para nos roubar e despojar.
Para isso espreitam noite e dia o momento favorável. Rondam
incessantemente, prontos para nos devorar e nos arrebatar
num só momento, por um único pecado, tudo o que ganhamos
em graças e méritos durante muitos anos. A sua malícia,
a sua experiência, as suas astúcias e o seu número devem-
nos fazer temer imensamente esta infelicidade. Já outras
pessoas, mais cheias de graça, mais ricas de virtudes, mais
fundadas na experiência e elevadas em santidade, foram surpreendidas,
roubadas e lamentavelmente despojadas.
Ah! Quantos cedros do Líbano, quantas estrelas do
firmamento não têm-se visto cair miseravelmente e, em pouco
tempo, perder toda a sua elevação e claridade! Donde proveio
esta estranha mudança? O que faltou não foi a graça, que
não falta a ninguém, foi a humildade. Julgaram-se mais fortes
e mais capazes do que eram; julgaram que podiam guardar os
seus tesouros. Fiaram-se e apoiaram-se em si mesmos. Acharam
a sua casa bastante segura e os seus cofres bastante fortes
para guardar o precioso tesouro da graça. Foi por causa desta
confiança não apercebida que tinham em si (embora lhes parecesse
que se apoiavam unicamente na graça de Deus) que
o Senhor, infinitamente justo, permitiu que fossem roubados
e abandonados a si mesmos.
Ah! Se tivessem conhecido a Admirável Devoção que
vou expor, teriam confiado o seu tesouro a uma Virgem poderosa
e fiel, que o teria guardado como seu, considerando isto
como um dever de justiça.
89. 3º. É difícil perseverar na justiça, por causa da estranha
corrupção do mundo. Ele está, presentemente, tão corrompido,
que se torna quase inevitável serem os corações religiosos
manchados, senão pela sua lama, ao menos pela po-
eira. Assim, é quase um milagre conservar-se alguém firme
no meio desta torrente impetuosa sem ser arrastado; andar
neste mar tormentoso sem ser submergido ou pilhado pelos
piratas e corsários; respirar este ar empestado sem lhe sentir
as más conseqüências. É a Virgem, a única sempre fiel, sobre
a qual a serpente jamais teve poder, quem faz este milagre a
favor daqueles e daquelas que a servem da melhor maneira.


São Luís Maria Grignion de Montfort, Tratado da Verdadeira Devoção à Santíssima Virgem

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