quarta-feira, 10 de abril de 2013

Tratado da Verdadeira à Santíssima Virgem - Capítulo Quinto



MOTIVOS QUE NOS DEVEM
FAZER ABRAÇAR ESTA DEVOÇÃO


Artigo Primeiro

Esta Devoção nos consagra inteiramente ao Serviço de Deus
135. Primeiro motivo, que nos mostra a excelência desta
consagração de si mesmo a Jesus Cristo pelas mãos de Maria.
Na Terra não se pode conceber ofício mais elevado que
o serviço de Deus, e o menor dos servos de Deus é mais rico,
mais poderoso e mais nobre que todos os reis e imperadores
do mundo, se estes não servem a Deus. Então, quais não serão
as riquezas, o poder e a dignidade do fiel e perfeito servo
de Deus, que se dedique inteiramente ao seu serviço, sem reservas,
tanto quanto possível! Tal é o fiel e amoroso escravo
de Jesus por Maria, que entregou-se todo ao serviço deste Rei
dos reis pelas mãos da sua Santa Mãe, e nada reservou para
si: todo o ouro da Terra e as belezas do Céu são insuficientes
para o pagar.

136. As outras congregações, associações e confrarias
erigidas em honra de Nosso Senhor e de sua Santa Mãe, que
fazem grande bem para o Cristianismo, não nos levam a dar
tudo sem reserva. Apenas prescrevem aos seus associados a
obrigação de certas práticas e ações, mas deixam-lhes livres
todos os outros atos e momentos da vida. Mas esta Devoção
de que falamos faz-nos dar incondicionalmente a Jesus e a
Maria todos os pensamentos, palavras, ações, sofrimentos e
instantes da nossa vida: assim, quer velemos, quer durmamos,
quer bebamos ou comamos, quer façamos grandes ou
pequeninas coisas, poderemos sempre dizer que tudo o que
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fazemos, embora nisso não pensemos, pertence a Jesus e a
Maria em virtude do nosso oferecimento (1 Cor 10, 31), a não
ser que o tenhamos expressamente revogado. Que consolação!
137. Além disso, como já ficou dito, não há nenhuma outra
prática que nos liberte mais facilmente dum certo espírito de
propriedade que penetra imperceptivelmente nas melhores
ações. O nosso bom Jesus concede esta grande graça em recompensa
do ato heróico e desinteressado que se fez, àquele
que, pelas mãos de sua Mãe, cedeu-lhe todo o valor das boas
obras. Se Ele dá cem por um, mesmo neste mundo (Mt 19,
29), àqueles que por seu amor deixam os bens exteriores, temporais,
perecedouros, que recompensa não dará àqueles que
lhe sacrificarem mesmo seus bens interiores e espirituais?!
138. Jesus, o nosso grande amigo, deu-se-nos sem reserva,
corpo e alma, virtudes, graças e méritos: “Ele ganhou-me todo,
dando-se todo a mim”, diz São Bernardo. Não é um dever de
justiça e de reconhecimento que lhe demos tudo o que nos for
possível dar? Ele foi o primeiro a ser liberal para conosco. Sejamo-
lo também para com Ele, e o veremos cada vez ainda mais
liberal, durante a nossa vida, na hora da morte e por toda a eternidade:
“Ele será generoso para com aqueles que são generosos
para com Ele” (Sl 17, 26).
Artigo Segundo
Esta Devoção nos faz imitar o exemplo dado por Jesus
Cristo e por Deus mesmo, e praticar a humildade
139. Segundo motivo, que nos mostra ser justo, em si mesmo,
e vantajoso para o cristão o consagrar-se inteiramente a
Maria Santíssima com esta prática, com o fim de ser consa103
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grado mais perfeitamente a Jesus Cristo.
Este bom Mestre não recusou encerrar-se no seio da
Santíssima Virgem como um cativo e escravo de amor, nem
ser-lhe submisso e obedecer-lhe durante trinta anos. E aqui,
repito, que o espírito humano se perde, ao refletir seriamente
sobre esta maneira de proceder da Sabedoria Encarnada. Embora
o pudesse fazer, não quis dar-se diretamente aos homens,
mas fê-lo pela Virgem Santíssima. Não quis vir ao mundo na
idade de homem perfeito, independente de outrem, mas antes
como uma pobre e pequenina criança, dependente dos cuidados
e sustento de sua Mãe. Esta Sabedoria Infinita, que tinha
um desejo imenso de glorificar a Deus, seu Pai, e de salvar os
homens, não achou meio mais perfeito nem mais rápido para
o fazer do que submeter-se à Santíssima Virgem. E era uma
submissão em todas as coisas, não somente durante os oito,
dez ou quinze primeiros anos da sua vida, como as outras
crianças, mas durante trinta anos. E deu mais glória a seu Pai
durante esse tempo de sujeição e dependência da Virgem
Santíssima, do que lhe teria dado empregando esses trinta
anos a fazer prodígios, a pregar por toda a Terra, a converter
todos os homens, do contrário, Ele o teria feito. Oh! Como
glorifica altamente a Deus quem se submete a Maria, seguindo
o exemplo de Jesus!
Tendo diante dos olhos um exemplo tão visível e conhecido
de todos, seremos tão insensatos para julgar possível
encontrar um meio mais perfeito e mais direto de glorificar a
Deus, do que a sua submissão a Maria, a exemplo de seu Divino
Filho?
140. Recorde-se aqui, como prova da dependência que devemos
ter para com a Mãe de Deus, o que acima disse (nn.
14-39), apontando os exemplos que o Pai, o Filho e o Espírito
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Santo nos dão da sujeição que devemos à Santíssima Virgem.
O Pai não deu nem dá seu Filho senão por Ela, não suscita
novos filhos senão por Ela, e não comunica as suas graças
senão por Ela. Deus Filho não foi formado para todos em
geral senão por Ela; não é formado e gerado todos os dias
(nas almas), em união com o Espírito Santo, e não comunica
os Seus méritos e virtudes, a não ser por Ela. O Espírito Santo
não formou Jesus Cristo senão por meio d'Ela, e não forma
os membros do seu Corpo Místico, a não ser por Ela; não
dispensa os Seus dons e favores senão por Ela. Poderemos,
sem uma extrema cegueira, depois de tantos e tão insistentes
exemplos da Santíssima Trindade, passar sem Maria, não nos
consagrar a Ela e nem depender d'Ela para irmos a Deus e nos
sacrificarmos a Deus?
141. Eis algumas passagens dos Padres, que escolhi para
provar o que acabo de dizer:
“Maria tem dois filhos, um Homem-Deus e o outro
homem puro. Do primeiro é Mãe corporalmente e do segundo
espiritualmente” (São Boaventura e Orígenes).
“Esta é a vontade de Deus, que quis recebêssemos tudo
por Maria. Se, pois, temos alguma esperança, alguma graça,
algum dom salutar, saibamos que nos vem d'Ela” (São
Bernardo).
“Todos os dons, virtudes e graças do Espírito Santo
são distribuídos pelas mãos de Maria, a quem Ela quer, quando,
como e na medida que Ela quer” (São Bernardino).
“Porque eras indigno de receber as graças divinas,
elas foram dadas a Maria, a fim de que recebas por Ela tudo
o que venhas a possuir” (São Bernardo).
142. Deus - como diz São Bernardo - vendo que somos in105
-
dignos de receber as graças diretamente das suas mãos, dá-as
a Maria, a fim de que por Ela recebamos tudo o que Ele nos
quis dar. E Deus encontra também a sua glória em receber,
pelas mãos de Maria, o reconhecimento, o respeito e o amor
que lhe devemos pelos Seus benefícios. É, pois, muito justo,
que imitemos o procedimento de Deus, “para que a graça
regresse ao seu Autor pelo mesmo canal por onde veio”, segundo
o mesmo São Bernardo.
É precisamente o que fazemos por esta Devoção: oferecemos
e consagramos tudo o que somos e tudo o que possuímos
à Santíssima Virgem, para que Nosso Senhor receba
por seu intermédio a glória e o reconhecimento que lhe devemos.
Reconhecemo-nos indignos e incapazes de nos abeirarmos
da sua Majestade infinita só por nós mesmos, e por isso
servimo-nos da intercessão da Santíssima Virgem.
143. Além disso, trata-se aqui de um ato de profunda humildade,
virtude que Deus ama acima de todas as outras. Uma
alma que se eleva, rebaixa a Deus; uma alma que se humilha,
eleva a Deus (Jo 3, 30). Deus resiste aos soberbos e dá a sua
graça aos humildes (Tg 4, 6). Se nos humilharmos, julgandonos
indignos de comparecer perante Deus e de nos aproximar
dEle, Deus desce, abaixa-se para vir a nós, para se comprazer
em nós e nos elevar, apesar da nossa miséria. Mas, pelo contrário,
quando alguém se aproxima ousadamente de Deus, sem
querer medianeiros, Deus esquiva-se, e não podemos chegar
até Ele. Oh! Como Ele ama a humildade de coração! É a tal
humildade que leva a prática desta Devoção, pois ensina a
nunca nos aproximarmos de Nosso Senhor por nós mesmos,
por mais doce e misericordioso que Ele seja, mas a servir-nos
sempre da intercessão de Maria, para comparecer diante de
Deus, seja para lhe falar, seja para simplesmente estreitar a
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proximidade, seja para lhe oferecer alguma coisa, seja para
unir-nos e consagrar-nos a Ele.
Artigo Terceiro
Esta Devoção oferece-nos a
assistência materna da Virgem Maria
I. Maria se dá ao seu escravo de amor
144. Terceiro motivo. A Santíssima Virgem, que é uma Mãe
toda doçura e misericórdia, nunca se deixa vencer em amor e
liberdade. Por isso, quando vê que alguém se lhe dá totalmente
para a honrar e servir, despojando-se do que tem de
mais querido para a amar, dá-se também, inteiramente e duma
maneira inefável, a quem tudo lhe deu. Ela submerge-o no
abismo das suas graças, Ela adorna-o com os Seus méritos,
Ela lhe dá o apoio do seu poder, Ela o ilumina com a sua luz,
Ela o abrasa no seu amor, Ela comunica-lhe as suas virtudes:
sua humildade, sua fé, sua pureza, etc. Ela se torna a sua garantia,
seu suplemento e seu tudo perante Jesus. Enfim, como
a alma que se consagrou é toda de Maria, também Maria é
toda dela. Desta maneira pode dizer-se deste fiel servo e filho
de Maria o que São João Evangelista diz de si mesmo, isto é,
que ele recebeu a Virgem Santíssima como todo o seu tesouro:
“O discípulo a recebeu em sua casa” (Jo 19, 27).
145. Isto produz na alma, se for fiel, uma grande desconfiança,
desprezo e ódio de si mesma, e uma grande confiança e
grande abandono à Santíssima Virgem, sua amável Soberana.
Já não se firma, como antes, nas suas disposições, intenções,
méritos, virtudes e boas obras. Porque, tendo feito um sacrifício
completo a Jesus por intermédio desta boa Mãe, já não
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tem senão um só tesouro que encerra todos os seus bens e que
já não está em suas mãos, e este tesouro é Maria.
Isso é que faz que a alma se aproxime de Nosso Senhor
sem escrúpulo nem temor servil, e que ela o invoque
com muita confiança. Os seus sentimentos tornam-se semelhantes
aos do piedoso e sábio Padre Pupert. Este, fazendo
alusão à vitória de Jacó sobre o Anjo (Gn 32, 23-33), dirige à
Santíssima Virgem estas palavras: “Ó Maria, minha Princesa
e Mãe imaculada de Deus feito homem, Jesus Cristo, eu
desejo lutar com este Homem, ou seja, com o Verbo Divino,
armado não com os meus próprios méritos, mas com os Vossos”.
Oh! Quão poderoso e forte junto de Jesus Cristo é quem
está armado dos méritos e da intercessões da digna Mãe de
Deus, que vence amorosamente o Todo-Poderoso, como diz
Santo Agostinho!
II. Maria purifica as nossas boas obras
146. Como nesta Devoção entregamos a Nosso Senhor, pelas
mãos de sua Santa Mãe, todas as nossas boas obras, esta
amável Senhora purifica-as, embeleza-as e fá-las aceitáveis
para o seu Filho.
1º. Ela os purifica de toda a sujeira do amor próprio e
do apego imperceptível à criatura, que estão insensivelmente
nas melhores ações. E como as mãos da Santíssima Virgem,
nunca manchadas nem ociosas, purificam tudo aquilo em que
tocam, estas mãos tão puras e fecundas tiram do presente que
lhe fazemos tudo o que tiver de estragado ou de imperfeito.
147. 2º. Ela as embeleza e adorna com Seus méritos e virtudes.
É como se um camponês, querendo ganhar a amizade e
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benevolência do rei, fosse ter com a rainha e lhe entregasse
uma maçã, que constituísse toda a sua fortuna, a fim de que
ela a apresentasse ao rei. A rainha, depois de recebida a pobre
e pequena oferta do camponês, poria essa maçã numa grande
e bela bandeja de ouro oferecendo-a assim ao rei, em nome
do camponês. E desde então a maçã - por si mesma indigna
de ser apresentada a um rei -, torna-se digna de sua majestade,
em atenção à bandeja de ouro e à pessoa que a presenteia.
148. 3º. Ela apresenta essas boas obras a Jesus Cristo, pois
nada reserva para si do que lhe dão, como se fosse fim, mas
tudo remete fielmente a Jesus. O que se lhe dá, dá-se necessariamente
a Jesus. Se a louvam e glorificam, Ela louva e glorifica
Jesus. Quando a louvam e bendizem, a Santíssima Virgem
canta, como outrora ao ser louvada por Santa Isabel: “A minha
alma glorifica o Senhor” (Lc 1,46).
149. 4º. Ela faz que Jesus aceite essas boas obras, por menores
e mais pobres que sejam, enquanto presente para este
Santo dos santos e Rei dos reis. Quando alguém apresenta a
Jesus alguma coisa em seu próprio nome e apoiado na sua
habilidade e disposição pessoais, Jesus examina o dom, e,
freqüentemente, rejeita-o, por causa da sujeira que contraiu
pelo amor próprio, tal como outrora rejeitou os sacrifícios
dos judeus, repletos que eram de vontade própria (Hb 10, 5-
7). Mas quando se lhe apresenta alguma coisa pelas mãos
puras e virginais da sua bem amada Mãe, toca-se-lhe no ponto
fraco, se me é lícito empregar esta expressão. Ele já não
considera tanto o que se lhe dá, como a sua boa Mãe, que lho
apresenta. Não olha tanto para donde lhe vem esse presente,
como para Aquela por quem o recebe. Assim Maria, que jamais
é rejeitada, e é sempre bem acolhida por seu Filho, faz
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que sua Majestade receba com agrado tudo quanto lhe apresenta,
seja grande ou pequeno. Basta que Maria a apresente,
para que Jesus receba e aceite. Era o grande conselho que
São Bernardo dava àqueles que conduzia à perfeição: “Quando
quiserdes oferecer alguma coisa a Deus, tende cuidado de
a oferecer pelas mãos muito agradáveis e muito dignas de
Maria, se não quiserdes ser repelidos”.
150. Não é isto mesmo o que a própria natureza inspira aos
pequenos em relação aos grandes, como já vimos? Por que a
graça não nos levaria a fazer o mesmo em relação a Deus, que
está infinitamente acima de nós, e diante de quem somos menos
que um átomo? Temos, além do mais, uma advogada tão poderosa
que nunca é repelida, tão hábil que conhece todos os
segredos para ganhar o Coração de Deus, tão boa e caridosa
que não repele ninguém, por pequeno ou mau que seja. Mais
adiante mostrarei, na história de Rebeca e Jacó, a verdadeira
prefigura das verdades que menciono.
Artigo Quarto
Esta Devoção é um meio excelente
para procurar a maior glória de Deus
151. Quarto motivo. Esta Devoção, fielmente praticada, é
um meio excelente para fazer com que o valor de todas as
nossas boas obras seja utilizado para a maior glória de Deus.
Quase ninguém age por este fim tão nobre - embora a isso
estejamos obrigados -, seja por não saber em que consiste a
maior glória de Deus, seja por não a querer. Mas a Santíssima
Virgem, a quem cedemos o valor e o mérito das nossas boas
obras, sabe perfeitamente onde reside a maior glória de Deus
e não faz nada sem ser para esse fim. Por isso um perfeito
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servo desta Rainha, inteiramente consagrado a Ela da forma
que dissemos, pode dizer corajosamente que o valor de todas
as suas ações, pensamentos e palavras é empregado para a
maior glória de Deus, a não ser que expressamente revogue
o seu oferecimento.
Poderá haver algo mais consolador para uma alma que
ama a Deus, com um amor puro e desinteressado, e que estima
a glória e os interesses divinos mais do que os seus próprios
interesses?!
Artigo Quinto
Esta Devoção conduz à união com Nosso Senhor
152. Quinto motivo. Esta Devoção é um caminho fácil, curto,
perfeito e seguro para chegar à união com Deus, na qual
consiste a perfeição cristã.
I. Caminho Fácil
É um caminho fácil que Jesus Cristo abriu ao vir até
nós, e onde não se encontra obstáculo algum para chegar até
Ele. Pode-se, na verdade, chegar à união divina por outros
caminhos, mas será por muito mais cruzes e mortes misteriosas,
com muito mais dificuldades, que só a custo serão
vencidas. Será preciso passar por noites escuras, por combates
e agonias misteriosas, por cima de montanhas escarpadas,
por cima de espinhos muito agudos e por desertos horríveis.
Mas pelo caminho de Maria passa-se mais suave e tranqüilamente.
Também aqui se encontram, é certo, rudes combates a
travar e grandes dificuldades a vencer. Mas esta boa Mãe e
Senhora torna-se tão presente e tão próxima dos Seus fiéis
servos para os iluminar nas suas trevas, esclarecer nas suas
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dúvidas, confirmar no meio dos seus temores, sustentar nas
lutas e dificuldades, que este caminho virginal para encontrar
Jesus Cristo é realmente um caminho de rosas e mel à vista
dos outros. Houve alguns santos, mas em pequeno número,
como Santo Efrém, São João Damasceno, São Bernardo, São
Bernardino, São Boaventura, São Francisco de Sales etc., que
passaram por este caminho ameno para ir a Jesus Cristo. O
Espírito Santo, Esposo fiel de Maria, tinha-lho indicado por
uma graça singular. Os outros santos, porém, que são em maior
número, embora todos tenham sido devotos da Santíssima
Virgem, não entraram, ou entraram muito pouco, nesta via.
Foi por isso que sofreram provas mais rudes e perigosas.
153. Mas então donde vem, dir-me-á algum fiel servo de
Maria, que os servos fiéis desta boa Mãe têm tantas ocasiões
de sofrer, e mais até do que outros que d'Ela não são tão devotos?
Contradizem-nos, perseguem-nos, caluniam-nos, não os
suportam; ou, ainda, caminham em trevas interiores e por desertos
onde não há a mínima gota do orvalho celeste. Se esta
Devoção à Santíssima Virgem torna mais fácil o caminho que
conduz a Jesus Cristo, donde vem que sejam eles os mais
crucificados?
154. Respondo-lhes: É bem verdade que os mais fiéis servos
da Santíssima Virgem são os Seus maiores favoritos. Por
isso são eles que recebem d'Ela as maiores graças e favores
do Céu, a saber, as cruzes. Mas sustento que são também os
servos de Maria que levam essas cruzes com mais facilidade,
com maior mérito e glória. Aquilo que deteria mil vezes outras
almas, ou as faria cair, não os detém nem uma só vez e fálos
avançar. É que esta Mãe, toda cheia de graça e de unção
do Espírito Santo, adoça todas estas cruzes que lhes prepara,
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no mel da sua Doçura Materna e na unção do Puro Amor.
Deste modo eles recebem-nas alegremente como nozes cobertas
de açúcar, ainda que em si sejam muito amargas.
Uma pessoa que deseja ser devota e viver piedosamente
em Jesus Cristo, conseqüentemente há de sofrer perseguição
e levar todos os dias a sua Cruz (Lc 9, 23). Julgo que tal pessoa
nunca levará grandes cruzes ou não as levará alegremente,
nem até o fim, sem possuir uma terna devoção à Santíssima
Virgem, que é a doçura das cruzes. Do mesmo modo ninguém
poderá comer, sem se fazer grande violência, que não será
muito duradoura, nozes verdes que não sejam adoçadas em
açúcar.
II. Caminho Curto
155. Esta Devoção à Santíssima Virgem é um caminho curto
para encontrar Jesus Cristo, quer porque ninguém se perde
nele, quer porque, como acabo de dizer, se avança por ele
com mais alegria e facilidade e, portanto, com mais prontidão.
Avança-se mais, em pouco tempo de submissão e dependência
para com Maria, que durante anos inteiros de vontade
própria e de apoio em si mesmo. Pois o homem obediente
e submisso a Maria Santíssima cantará vitórias notáveis
sobre todos os seus inimigos (Pr 21, 28). Quererão estes impedi-
lo de caminhar, fazê-lo recuar ou cair, é verdade. Mas,
com o apoio, a ajuda e a guia de Maria, sem cair, sem recuar
e mesmo sem se atrasar, avançará a passos de gigante para
Jesus Cristo, pelo mesmo caminho por onde, como está escrito,
Jesus veio até nós a passos de gigante e em pouco tempo
(Sl 18, 6).
156. Por que julgais que Jesus Cristo viveu tão pouco tem113
-
po na Terra e que, nos poucos anos que nela passou, viveu
quase sempre em submissão e obediência à sua Mãe? Ah! É
que, tendo morrido cedo, viveu muito (Sb 4, 13) - e muito
mais que Adão, cujas perdas vinha reparar, embora este vivesse
mais de novecentos anos. E Jesus Cristo viveu muito
porque viveu bem unido e submisso à sua Santa Mãe, para
obedecer a Deus seu Pai. E é assim pelas seguintes razões:
1ª. Aquele que honra sua mãe é semelhante ao homem
que ajunta tesouros, como diz o Espírito Santo. Isto é, aquele
que honra Maria, sua Mãe, até se submeter a Ela, a obedecer-lhe
em todas as coisas, tornar-se-á em breve muito rico, pois amontoa
diariamente tesouros, pelo segredo desta pedra filosofal:
“Como quem acumula tesouros, assim é aquele que honra sua
mãe” (Eclo 3, 5).
2ª. É no seio de Maria, que encerrou e gerou um homem
perfeito e que pôde conter Aquele que nem o universo
inteiro pode compreender nem conter, é no seio de Maria,
digo, que os jovens se tornam velhos anciãos em luz, em santidade,
em experiência e em sabedoria, e que atingem em poucos
anos a plenitude da idade de Jesus Cristo. Isto baseia-se numa
interpretação espiritual da seguinte palavra do Espírito Santo:
“A minha velhice está na misericórdia do seio” (Sl 91, 11).
III. Caminho Perfeito
157. Esta prática de Devoção à Santíssima Virgem é um caminho
perfeito para ir e para se unir a Jesus Cristo, porque
Maria Santíssima é a mais perfeita e a mais Santa das puras
criaturas, e Jesus Cristo, que veio a nós de maneira perfeita,
não escolheu outro caminho para a sua grande e admirável
viagem.
O Altíssimo, o Incompreensível, o Inacessível, Aquele
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que é (Ex 3, 14), quis vir a nós, pequeninos vermes da Terra,
que nada somos. E como se fez isto?
O Altíssimo desceu perfeita e divinamente até nós por
meio da humildade de Maria, sem nada perder da sua divindade
e santidade. É igualmente por Maria que os pequeninos devem
subir, perfeita e divinamente, ao Altíssimo, sem nada temer.
O Incompreensível deixou-se compreender e conter perfeitamente
pela humilde Maria, sem nada perder da sua imensidade.
É também por Maria que nos devemos deixar conter e
conduzir perfeitamente, sem nenhuma reserva.
O Inacessível aproximou-se, uniu-se estreitamente e
até pessoalmente à nossa humanidade por intermédio de Maria,
sem nada perder da sua majestade. É também por Maria
que nos devemos aproximar de Deus e unir-nos à Divina Majestade
perfeita e estreitamente, sem receio de sermos repelidos.
Enfim, Aquele que é quis vir ao que não é, e fazer que
o que não é se transforme em Deus ou naquele que é. Deus fêlo
perfeitamente, dando-se e submetendo-se inteiramente à
jovem Virgem Maria, sem deixar de ser, no tempo, Aquele
que é desde toda a eternidade. É ainda por Maria que nos
podemos tornar semelhantes a Deus pela graça e pela glória,
embora nada sejamos. Basta entregarmo-nos a Ela tão perfeita
e inteiramente que já nada sejamos em nós mesmos, mas
tudo n'Ela, sem receio de nos enganarmos.
158. Abram-me um caminho novo para ir a Jesus Cristo,
calcetado com todos os méritos dos bem-aventurados, ornado
com todas as suas virtudes heróicas, iluminado e enfeitado
com a luz e a beleza de todos os anjos, e que os anjos todos e
os santos nele se encontrem para conduzir, defender e sustentar
aqueles e aquelas que por ele queiram seguir.
Com certeza absoluta, digo-o ousadamente, e digo a
115 -
verdade: eu escolheria, de preferência a este caminho tão perfeito,
o caminho imaculado de Maria (Sl 17, 33), caminho
sem nódoa alguma nem defeito, sem pecado original nem atual,
sem sombras nem trevas.
E quando o meu amável Jesus vier segunda vez à Terra,
em sua glória, (como é certo), para aqui reinar, não escolherá
outro caminho para a sua vinda, senão Maria Santíssima,
por quem veio tão segura e perfeitamente primeira vez. A diferença
que há entre a primeira e a última vinda é que a primeira
foi secreta e escondida, e a segunda será gloriosa e triunfante;
mas são ambas perfeitas, pois ambas por intermédio de
Maria. Ai! Eis um mistério que não se compreende: “Que
toda a língua aqui emudeça!”
IV. Caminho Seguro
159. Esta Devoção à Santíssima Virgem é um caminho seguro
para ir a Jesus Cristo e alcançar a perfeição, unindo-nos
a Ele.
1º. Porque esta prática de Devoção que ensino não é
de modo algum nova. Como afirma M. Boudon, falecido há
pouco em odor de santidade, numa obra que escreveu sobre
esta Devoção, ela é tão antiga que não se lhe pode marcar
com precisão o início. É certo, no entanto, que há mais de 700
anos se encontram vestígios dela na Igreja.
Santo Odilão, abade de Cluny, que viveu cerca do ano
de 1040, foi um dos primeiros a praticar publicamente esta
Devoção na França, como se vê na sua vida.
O Cardeal Pedro Damião refere que no ano de 1016 o
bem-aventurado Marinho, seu irmão, se fez escravo da
Santíssima Virgem, na presença do seu diretor e duma maneira
muito edificante: pôs uma corda ao pescoço, tomou a dis-
116
ciplina, e colocou sobre o altar uma soma de prata, como sinal
da sua dedicação e consagração à Santíssima Virgem. Manteve-
se tão fiel a este ato durante toda a vida que mereceu, na
hora da morte, ser visitado e consolado pela sua amável Soberana,
e receber dos Seus lábios a promessa do paraíso, como
recompensa dos seus serviços.
Cesário Bolando faz menção dum ilustre cavaleiro,
Valter de Birbak, parente próximo dos duques de Lovaina,
que, por volta de 1300, fez esta consagração de si mesmo à
Santíssima Virgem.
A mesma Devoção foi praticada por muitos particulares
até o século XVII, em que se tornou pública.
160. O Padre Simão de Roias, da Ordem da Trindade, também
chamada da Redenção dos Cativos, pregador do rei Filipe
III, pôs em voga esta Devoção em toda a Espanha e na
Alemanha. Obteve de Gregório XV, a instâncias de Filipe III,
grandes indulgências para todos aqueles que a praticassem.
O Padre de Los Rios, da Ordem de Santo Agostinho,
aplicou-se com o Padre de Roias, seu íntimo amigo, a difundir
esta Devoção, por meio de seus escritos e pregações, na
Espanha e na Alemanha. Compôs um grosso volume intitulado
“Hierarchia Mariana”, em que trata, com tanta piedade e erudição,
da antiguidade, excelência e solidez desta Devoção.
161. No século passado, os Reverendos Padres Teatinos estabeleceram
esta Devoção na Itália, na Sicília e na Sabóia.
O Padre Estanislau Falácio, da Companhia de Jesus,
promoveu maravilhosamente esta Devoção na Polônia.
O Padre de Los Rios, no livro já citado, refere o nome
117 -
dos príncipes, princesas, duques e cardeais, de vários reinos,
que abraçaram esta Devoção.
O Padre Cornélio a Lápide, tão louvável por sua piedade
como por sua profunda ciência, foi encarregado, por diversos
bispos e teólogos, de examinar esta Devoção. Depois
de maduro exame teceu-lhe louvores dignos da sua piedade,
no que foi seguido por muitas outras grandes personalidades.
Os Reverendíssimos Padres Jesuítas, sempre zelosos
no serviço da Santíssima Virgem, apresentaram ao duque
Fernando de Baviera, então Arcebispo de Colônia, em nome
dos congregacionistas da mesma cidade, um pequeno tratado
sobre a dita Devoção. Aquele prelado deu-lhe a sua aprovação
e a licença de o imprimir, e exortou todos os párocos e
religiosos da sua diocese a propagar esta sólida Devoção, na
medida das suas forças.
162. O Cardeal de Bérulle, cuja memória é abençoada em
toda a França, foi um dos mais zelosos em espalhar a mesma
Devoção neste país, apesar de todas as calúnias e perseguições
que lhe levantaram os críticos e os libertinos. Acusaramno
de inovação e de superstição. Escreveram e publicaram
contra ele um folheto difamatório e serviram-se, (ou antes,
fê-lo o demônio por intermédio deles), de mil estratagemas
para o impedir de propagar esta Devoção na França. Mas este
grande e santo homem respondeu às calúnias só com a sua
paciência, e às objeções, contidas no referido libelo, com um
pequeno escrito em que as refuta vigorosamente. Nesse escrito
mostra como esta Devoção se funda no exemplo de Jesus
Cristo, nas nossas obrigações para com Ele e nas promessas
que fizemos no Batismo. É particularmente com esta última
razão que fecha a boca aos seus adversários. Faz-lhes ver que
esta consagração à Santíssima Virgem e, por suas mãos, a
- 118
Jesus Cristo, não é mais que a perfeita renovação das promessas
do Batismo. Diz coisas muito belas sobre esta prática,
como se poderá ver nas suas obras.
163. O livro de M. Boudon, já citado (n. 159), refere os nomes
dos diversos Papas que aprovaram esta Devoção, os teólogos
que a examinaram, as perseguições que suportou e venceu,
e os milhares de pessoas que a abraçaram, sem que jamais
Papa algum a tenha condenado. Nem seria possível fazêlo
sem derrubar os próprios fundamentos do Cristianismo.
Consta, pois, que esta Devoção não é nova. E se não é
muito comum, é por ser preciosa demais para ser apreciada e
praticada por todo o mundo.
164. 2º. Esta Devoção é um meio seguro para ir a Jesus Cristo,
porque é próprio da Santíssima Virgem conduzir-nos com
segurança a Ele, como é próprio de Jesus conduzir-nos seguramente
ao Eterno Pai. E que os espirituais não caiam no erro
de pensar que Maria seja um impedimento para chegar à união
divina. Seria possível que Aquela que achou graça diante de
Deus, para todos em geral e para cada um em particular, fosse
obstáculo a uma alma para encontrar a grande graça da união
com Deus? Seria possível que Maria pudesse impedir uma
alma de se unir perfeitamente a Deus, visto que Ela foi cheia
e superabundou em graças, e que viveu tão unida e transformada
em Deus que Ele teve de se encarnar n'Ela?
É bem verdade que a visão de outras criaturas, embora
santas, poderia talvez retardar a união divina em certas circunstâncias,
mas jamais Maria, como já disse e não me cansarei
de repetir. Uma das razões porque tão poucas almas
atingem a plenitude da idade de Jesus Cristo é que Maria,
que é, hoje como sempre, a Mãe do Filho e a Esposa fecunda
119 -
do Espírito Santo, não está suficientemente formada nos corações.
Quem deseja possuir o fruto bem maduro e formado
deve ter a árvore que o produz. Quem deseja o fruto de vida,
Jesus Cristo, deve ter a árvore de vida, que é Maria. Quem
quer ter em si a ação do Espírito Santo, deve ter a sua fiel e
indissolúvel Esposa, Maria Santíssima, que o torna fértil e
fecundo, como já dissemos noutro lugar (nn. 20-21).
165. Estejamos, portanto, certos de que quanto mais presente
tivermos Maria nas nossas orações, contemplações,
ações e sofrimentos - se não puder ser de um modo distinto e
preceptível, que seja pelo menos de uma maneira geral e implícita
-, tanto mais perfeitamente encontraremos Jesus Cristo.
Ele está sempre em Maria, grande, poderoso, operante e
incompreensível, mais que no Céu ou em qualquer outra criatura
do universo. Assim, Maria Santíssima, toda mergulhada
em Deus, está bem longe de se tornar um obstáculo para os
perfeitos chegarem à união com Deus. Aliás, é todo o contrário:
não houve até hoje nem jamais haverá criatura alguma
que nos ajude mais eficazmente nesta grande obra, seja pelas
graças que para este efeito nos comunica - pois como diz um
santo, “ninguém é cheio do pensamento de Deus senão por
Ti” -, seja por garantir-nos contra o espírito maligno em suas
ilusões e trapaças.
166. Lá onde está Maria, não pode estar o espírito maligno.
Um dos sinais infalíveis de que uma alma é conduzida
pelo bom espírito é que possua uma grande Devoção a Maria,
e que pense e fale n'Ela. É esta a opinião dum santo, que
acrescenta que assim como a respiração é um sinal certo de
que o corpo não está morto, assim o pensamento freqüente e
a amorosa invocação de Maria é a prova de que a alma não
- 120
está morta pelo pecado.
167. Diz a Igreja, e o Espírito Santo que a conduz, que “só
Maria esmagou todas as heresias deste mundo”. Por isso um
fiel devoto de Maria nunca cairá na heresia ou na ilusão, pelo
menos formalmente, por mais que os críticos resmunguem.
Poderá sim errar materialmente, tomar por verdade uma mentira
e por bom o espírito maligno, ainda que mais dificilmente
que qualquer outra pessoa. Mas, mais cedo ou mais tarde,
conhecerá a sua falta e o seu erro material, e quando o conhecer
não se obstinará de forma alguma em crer ou sustentar o
que tinha julgado verdadeiro.
É um caminho traçado por Jesus
168. Portanto, todo aquele que, sem temor de ilusão, comum
às pessoas de oração, quiser avançar no caminho da
perfeição e encontrar com segurança e perfeitamente Jesus
Cristo, abrace de coração dilatado (2 Mac 1, 3) esta
Devoção à Santíssima Virgem, que talvez ainda não conheça.
Que entre neste excelente caminho que não conhecia
e que lhe indico (1 Cor 12, 31), pois é o caminho aberto
por Jesus Cristo, a Sabedoria Encarnada, nosso único
Chefe, e os membros que o trilharem não podem enganarse.
É um caminho fácil, devido à plenitude de graça e
de unção do Espírito Santo que o enche. Quem por ele
caminha não se cansa nem recua.
É um caminho curto, que em pouco tempo nos leva a
Jesus Cristo.
É um caminho perfeito, onde não há lama nem poeira,
nem a menor impureza de pecado.
Enfim, é um caminho seguro, que nos conduz a Jesus
121 -
Cristo e à Vida Eterna, reta e seguramente, sem desvios nem
para a direita nem para a esquerda.
Entremos neste caminho, e avancemos por ele, noite e
dia, até a plenitude da idade de Jesus Cristo.
Artigo Sexto
Esta Devoção dá uma grande liberdade de espírito
169. Sexto motivo. Esta prática de Devoção dá uma grande
liberdade interior àqueles que a observam fielmente. É a liberdade
dos filhos de Deus (Gl 5, 1-13; 2 Cor 3, 17; Rm 8,
21). Como por esta Devoção nos tornamos escravos de Jesus
Cristo, consagrando-nos totalmente a Ele nesta qualidade, este
bom Mestre recompensa o cativeiro amoroso em que nos colocamos
da seguinte maneira:
- Tira da alma todo escrúpulo e temor servil, que só
servem para a estreitá-la, escravizá-la e confundi-la;
- Dilata o coração para uma santa confiança em Deus,
fazendo-o ver n'Ele seu Pai;
- Inspira-lhe um amor terno e filial.
170. Sem me deter em provar esta verdade por meio de razões,
contento-me em citar um fato histórico que li na vida da
Madre Inês de Jesus. Era religiosa jacobina do convento de
Langeac, em Auvergne, e faleceu nesse mesmo local em odor
de santidade no ano de 1634. Ainda não tinha mais de sete
anos quando já sofria de grandes penas do espírito. Foi então
que ouviu uma voz dizer-lhe que, se desejava ser livre de
todas as suas penas e protegida contra todos os seus inimigos,
deveria tornar-se o mais depressa possível escrava de
Jesus e de sua Santa Mãe. Mal regressou a casa, deu-se inteiramente
como escrava a Jesus e à sua Santa Mãe, embora não
- 122
conhecesse até aquela data esta Devoção. Tendo encontrado
uma cadeia de ferro, cingiu-se com ela sobre os rins e usou-a
até a morte. Depois desta ação cessaram todas as suas penas e
escrúpulos. Ficou em tanta paz e liberdade de coração que
ensinou esta prática a várias pessoas - que nela fizeram grandes
progressos - entre outros ao Pe. M. Olier, fundador do Seminário
de São Sulpício, e a outros sacerdotes e eclesiásticos do
mesmo seminário. Um dia apareceu-lhe a Santíssima Virgem
e pôs-lhe ao pescoço uma cadeia de ouro, testemunhando-lhe
assim a alegria que sentia por ela se ter feito escrava sua e de
seu Filho. Santa Cecília, que acompanhava a Santíssima Virgem,
disse-lhe: Felizes os fiéis escravos da Rainha do Céu,
porque gozarão a verdadeira liberdade: Ó Mãe, servir-Vos é
a liberdade!
Artigo Sétimo
Esta Devoção causa grandes vantagens para o próximo
171. Sétimo motivo. Outro motivo que nos pode comprometer
a abraçar esta Devoção são os grandes bens que dela
receberá nosso próximo. Por esta prática exercemos a caridade
para com ele duma maneira eminente, pois damos-lhe, pelas
mãos de Maria, o que temos de mais caro, ou seja, o valor
satisfatório e impetratório de todas as nossas boas obras, sem
excluir o mínimo bom pensamento ou o mais leve sofrimento.
Consentimos que todas as satisfações que adquirimos e havemos
de adquirir até a morte sejam aplicadas, segundo a vontade da
Santíssima Virgem, ou pela conversão dos pecadores, ou pela
libertação das almas do Purgatório.
Não será isto amar perfeitamente o nosso próximo? (Jo
15, 13). Não é isto ser verdadeiro discípulo de Jesus Cristo,
que se reconhece pela caridade? (Jo 13, 35). Não é este o
meio de converter os pecadores sem perigo de vaidade, e de
123 -
libertar as almas do Purgatório quase sem fazer mais nada
além do que nos impõem os deveres de estado?
172. Para se apreciar a excelência deste sétimo motivo seria
preciso conhecer o bem que é a conversão dum pecador ou a
libertação duma alma do Purgatório. É um bem infinito, maior
do que criar o Céu e a Terra, pois é dar a uma alma a
posse de Deus. Quando por esta prática se livrasse apenas
uma alma do Purgatório, durante toda a vida, ou se convertesse
apenas um pecador, não bastaria isso para levar todo homem
verdadeiramente caridoso a abraçá-la?
Mas é preciso notar que as nossas boas obras, passando
pelas mãos de Maria, recebem um aumento de pureza e,
por conseguinte, de mérito e de valor satisfatório e
impetratório. Tornam-se assim muito mais eficazes para aliviar
as almas do Purgatório e converter os pecadores do que
se não passassem pelas mãos virginais e generosas de Maria.
O pouco que por Ela se dá, sem vontade própria e com uma
caridade muito desinteressada, torna-se verdadeiramente poderoso
para aplacar a cólera de Deus e atrair a sua misericórdia.
Na hora da morte verificar-se-á que uma pessoa realmente
fiel a esta prática, terá livrado, por este meio, muitas almas
do Purgatório e convertido muitos pecadores, embora só tenha
praticado as ações ordinárias do seu estado. Que alegria no
momento do juízo! Que glória para a eternidade!
Artigo Oitavo
- 124
Quanto mais atenção dedicares a Maria nas tuas orações,
ações, contemplações e sofrimentos, mais perfeitamente
encontrarás Jesus Cristo, que está sempre com Ela.
125 -
Esta Devoção é um meio admirável de perseverança
173. Oitavo motivo. Enfim, o que de certo modo nos impelirá
mais fortemente ainda para esta Devoção à Santíssima
Virgem é ser ela o meio admirável para perseverarmos na virtude
e sermos fiéis. Por que é que a maior parte das conversões
dos pecadores não são duradouras? Por que recaem eles
tão facilmente no pecado? Por que é que a maior parte dos
justos, em vez de ir de virtude em virtude e de alcançar novas
graças, perdem muitas vezes as poucas virtudes e graças que
possuem? Esta desgraça provém, como já acima mostrei (nn.
87-89), de que estando o homem tão corrompido, tão fraco e
inconstante, se fia em si próprio, se apóia nas suas próprias
forças e se julga capaz de guardar o tesouro das suas graças,
virtudes e méritos.
Por meio desta Devoção, confiamos à Santíssima Virgem
- e sabemos como Ela é fiel - tudo o que possuímos.
Tomamo-la como depositária universal de todos os nossos
bens da natureza e da graça. Confiamo-nos à sua fidelidade,
apoiamo-nos no seu poder e fundamo-nos na sua misericórdia
e caridade, a fim de que conserve e aumente as nossas
virtudes e méritos, apesar dos esforços que o demônio, o
mundo e a carne fazem para no-los roubar. Dizemos-lhe como
um bom filho à sua mãe e um fiel servo à sua senhora:
“Guardai o meu depósito!” (1 Tm 6, 20). Minha boa Mãe e
Senhora, reconheço que, por Vossa intercessão, recebi até hoje
mais graças de Deus do que merecia. A minha triste experiência
me ensina que trago este tesouro num vaso muito frágil, e
que sou demasiado fraco e miserável para o conservar em
mim: “Sou novo e desprezado” (Sl 118, 141). Recebei, por
favor, em depósito, tudo quanto possuo, e conservai-mo por
Vossa fidelidade e poder. Se me guardardes, nada perderei; se
- 126
me sustentardes, não hei de cair; se me protegerdes, estarei
ao abrigo dos meus inimigos.
174. É o que diz São Bernardo, em termos formais, para nos
inculcar esta prática: “Quando Ela vos sustém, não caís, quando
vos protege, nada temeis; quando vos conduz, não vos
cansais; quando vos é favorável, chegais ao porto da salvação.”
São Boaventura parece dizer-nos a mesma coisa em
termos ainda mais formais: “A Santíssima Virgem, diz ele, não
é apenas detida na plenitude dos santos, mas Ela retém e
guarda os santos na plenitude deles, para que esta não diminua.
Impede que as suas virtudes se dissipem, que os seus
méritos pereçam, que se percam as suas graças, e que os demônios
lhes façam mal. Enfim, impede que Nosso Senhor os
castigue quando pecam.”
175. A Virgem Santíssima é a Virgem Fiel que, pela sua fidelidade
a Deus, repara as perdas causadas pela infiel Eva
por sua infidelidade. Obtém de Deus a fidelidade e a perseverança
para todos os que se lhe dedicam, pelo que um santo a
compara a uma âncora firme, que os retém e impede de naufragar
no meio do mar agitado deste mundo, onde tantos perecem
por se não segurarem a esta âncora sólida. “Nós ligamos
as almas à Vossa esperança, como a uma âncora firme”
(São Boaventura).
Foi a Ela que os santos que se salvaram mais se amarraram
e mais amarraram os outros, para perseverar na virtude.
Felizes, pois, mil vezes felizes os cristãos que agora se
agarram fiel e inteiramente a Maria, como a uma âncora firme.
As investidas das tempestades deste mundo não os farão
soçobrar, nem perder os seus tesouros celestes.
127 -
Felizes os que se acolhem a Ela, como à arca de Noé!
As águas do dilúvio do pecado, que afogam a tantos, não os
prejudicarão, porque, repete a Santíssima Virgem com a Sabedoria:
“Aqueles que em mim trabalham na sua salvação,
não pecarão” (Eclo 24, 30).
Felizes os pobres filhos da infeliz Eva, que se ligam à
Mãe e Virgem Fiel, que sempre permanece fiel e nunca se
desmente: “Ela permanece fiel, não podendo negar-se a si
mesma” (2 Tm 2, 13). Ela ama sempre os que a amam (Pr 8,
17), com um amor não apenas afetivo, mas efetivo e eficaz,
porque os impede, por meio de graças abundantes, de recuar na
virtude, ou de cair no caminho, perdendo a graça de seu Filho.
176. Esta boa Mãe recebe sempre, por pura caridade, tudo o
que lhe damos em depósito. E, uma vez que o recebeu como
depositária, é obrigada em justiça a no-lo guardar, em virtude
do contrato de depósito. Do mesmo modo que uma pessoa, a
quem eu tivesse confiado mil moedas de ouro, seria obrigada
a guardá-las, e se, por negligência, viesse a perdê-las, em boa
justiça seria Ela a responsável. Mas não, nunca a fiel Maria
deixará perder, por negligência, o que lhe tiver sido confiado.
Seria mais fácil passarem o Céu e a Terra do que Ela ser negligente
e infiel para com os que n'Ela confiam.
177. Ó pobres filhos de Maria, a vossa fraqueza é extrema,
grande a vossa inconstância e bem corrompida a vossa natureza.
Fostes tirados, é certo, do mesmo barro corrompido que
os filhos de Adão e Eva. Mas não desanimeis por isso.
Consolai-vos e alegrai-vos! Eis que vos ensino este segredo
desconhecido da maioria dos cristãos, até mesmo dos mais
piedosos.
- 128
Não guardeis o vosso ouro e a vossa prata nos vossos
cofres, já forçados pelo espírito maligno que vos roubou. Eles
são pequenos, velhos e fracos demais para guardar tão grande
e precioso tesouro. Não ponhais a água pura e cristalina
da fonte nos vossos vasos estragados e infectados pelo pecado.
Se o pecado já não existe em vós, ficou pelo menos o seu
odor e a água se contaminará. Não deiteis os vossos vinhos
finos em vossos tonéis velhos, que já foram cheios de mau
vinho; ficariam estragados e em perigo de se perderem.
178. Embora me compreendais, almas predestinadas, quero
falar mais claramente.
Não confieis o ouro da vossa caridade, a prata da vossa
pureza, as águas das graças celestiais e o vinho dos vossos
méritos e virtudes a um saco roto, a um cofre velho e
arrombado, a uma vasilha estragada e contaminada como
sois vós. Do contrário sereis roubados pelos ladrões, isto é,
pelos demônios, que procuram e espiam noite e dia o tempo
propício para o fazer. Do contrário, estragareis, pelo mau
odor do vosso amor próprio, da confiança em vós mesmos e
da vossa própria vontade, tudo o que de mais puro Deus vos
dá.
Colocai, lançai no seio e no Coração de Maria todos
os vossos tesouros, todas as vossas graças e virtudes. Ela é
vaso espiritual, vaso honorífico, vaso insigne de devoção. Depois
que o próprio Deus se encerrou neste vaso, com todas as
suas perfeições, tornou-se todo espiritual e fez-se a morada
das almas mais espirituais. Tornou-se honorífico, e trono de
honra dos maiores príncipes da eternidade. Tornou-se insigne
em devoção, e a morada das mais ilustres em doçura, em
graças e virtudes. Enfim, tornou-se rico como uma Casa de Ouro,
forte como a Torre de Davi e puro como uma Torre de Marfim.
129 -
179. Ah! Como é feliz aquele que deu tudo a Maria, que se
confia e abandona, em tudo e por tudo, em Maria! É todo
d'Ela e Ela é toda d'Ele. Pode dizer ousadamente com Davi:
“Maria foi feita para mim” (Sl 118, 56); ou com o discípulo
amado: “Recebi-a como toda a minha riqueza” (Jo 19, 27);
ou com Jesus Cristo: “Tudo o que é meu é teu, e tudo o que é
teu é meu” (Jo 17, 10).
180. Se, ao ler isto, algum crítico imaginar que falo com
exagero e levado por devoção desmedida, pobre dele! Não
me compreende, ou porque é um homem carnal, que não entende
as coisas do espírito, ou porque pertence ao mundo e
não pode receber o Espírito Santo, ou porque é orgulhoso e
crítico, e condena ou despreza tudo o que não percebe. Mas
as almas que não nasceram do sangue, nem da vontade da
carne, nem da vontade do homem, mas de Deus e de Maria,
essas compreendem-me e apreciam, e é para elas que eu escrevo
(Jo 1, 13).
181. No entanto, retorno à matéria interrompida, dizendo a
uns e a outros que Maria Santíssima é a mais honesta e liberal
de todas as simples criaturas. Nunca se deixa vencer em amor
e liberalidade; em troca de um ovo, diz um santo homem, Ela
dá um boi; quer dizer, por pouco que se lhe der, Ela dá muito
mais daquilo que recebeu de Deus. Se, pois, uma alma se lhe
entrega sem reservas, Ela também se lhe dá toda, contanto
que a alma ponha n'Ela, sem presunção, toda a sua confiança,
trabalhando, por sua vez, em adquirir as virtudes e em vencer
as suas paixões.
- 130
182. Que os fiéis servos da Santíssima Virgem digam, portanto,
com a ousadia de São João Damasceno: “Tenho confiança
em Vós, ó Mãe de Deus, serei salvo. Tendo a Vossa proteção,
nada temerei. Com o Vosso socorro combaterei e porei
em debandada os meus inimigos: porque a Vossa Devoção é
uma arma de salvação que Deus dá aos que quer salvar!”



São Luís Maria Grignion de Montfort, Tratado da Verdadeira Devoção à Santíssima Virgem

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