segunda-feira, 25 de março de 2013

Tratado da Verdadeira Devoção à Santíssima Virgem - Capítulo Quarto



NATUREZA DA PERFEITA
DEVOÇÃO À SANTÍSSIMA VIRGEM MARIA


120. Toda a nossa perfeição consiste em sermos conformes
a Jesus Cristo, em nos unirmos e consagrarmos a Ele. Por
isso, a mais perfeita de todas as devoções é, indubitavelmente,
aquela que nos conforma, nos une e nos consagra mais perfeitamente
a Jesus Cristo. Ora, de todas as criaturas, Maria é a
mais conforme a Ele. Por conseguinte, a Devoção que, dentre
todas as demais, melhor consagra e assemelha uma alma a
Nosso Senhor é a Devoção à Santíssima Virgem, sua Santa
Mãe. E quanto mais uma alma for consagrada a Maria, tanto
mais o será a Jesus Cristo. É por isso que a perfeita consagração
a Jesus Cristo não é mais que uma perfeita e inteira consagração
da alma à Santíssima Virgem. E nisto consiste a
Devoção que ensino ou, por outras palavras, consiste numa
perfeita renovação dos votos e promessas do Santo Batismo.
Artigo Primeiro

Uma Perfeita e Total Consagração
de si mesmo à Santíssima Virgem Maria
121. Como fica dito, esta Devoção consiste em nos darmos
inteiramente à Santíssima Virgem, para que por Ela pertençamos
inteiramente a Jesus Cristo. É preciso que dar-lhe:
1º. Nosso corpo, com todos os seus sentidos e membros;
2º. Nossa alma, com todas as suas potências;
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3º. Nossos bens exteriores, chamados de fortuna, presentes
e futuros;
4º. Nossos bens interiores e espirituais, que são os nossos
méritos, virtudes e boas obras passadas, presentes e futuras.
Numa palavra, devemos dar tudo o que temos na ordem
da natureza e na ordem da graça, e tudo o que podemos
vir a ter no futuro, na ordem da natureza, da graça ou da glória.
E isto sem excetuarmos nada, nem um centavo, nem um
cabelo ou a menor boa ação, e por toda a eternidade, sem
pretendermos esperar outra recompensa pelo nosso oferecimento
e serviços, além da honra de pertencer a Jesus Cristo
por Ela e n'Ela, ainda que esta amável Senhora não fosse, como
é sempre, a mais liberal e agradecida de todas as criaturas.
122. É preciso notar, neste ponto, que há dois aspectos nas
boas obras que fazemos, a saber: a satisfação e o mérito, ou
para melhor dizer, o valor satisfatório ou impetratório e o valor
meritório. O valor satisfatório ou impetratório duma boa
ação consiste em satisfazer a pena devida pelo pecado, ou em
alcançar uma nova graça. O valor meritório, ou mérito, consiste
em uma boa ação merecer a graça e a glória eterna. Ora,
nesta consagração de nós mesmos à Santíssima Virgem, damos-
lhe todo o valor satisfatório ou impetratório e o valor
meritório, ou seja, as satisfações e os méritos de todas as nossas
boas obras. Damos-lhe os nossos méritos, as graças e virtudes,
não para comunicá-los a outrem, mas para que, como
depois diremos, Ela no-los conserve, aumente e aperfeiçoe.
Os méritos, graças e virtudes, são, pois, propriamente falando,
inalienáveis. Só Jesus Cristo, tornando-se a nossa garantia
junto do Pai, nos pode comunicar os Seus méritos. Damoslhe
as nossas satisfações para as comunicar a quem entender
para a maior glória de Deus.
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123. Daqui segue:
1º. Que por esta Devoção damos a Jesus Cristo tudo o
que lhe podemos dar. Fazemo-lo da maneira mais perfeita,
visto ser pelas mãos de Maria. E damos assim muito mais do
que pelas outras devoções, em que lhe consagramos parte do
nosso tempo, ou parte das nossas boas obras, ou parte das
nossas satisfações e mortificações. Aqui tudo fica dado e consagrado,
até mesmo o direito de dispor dos bens interiores, e
das satisfações que se ganham com as boas obras de cada
dia. Isto não se pede nem mesmo numa ordem religiosa. Na
vida religiosa, dão-se a Deus os bens de fortuna pelo voto de
pobreza, os bens do corpo pelo voto de castidade, a vontade
própria pelo voto de obediência e, às vezes, a liberdade física
pelo voto de clausura. Mas não se lhe dá a liberdade ou o
direito de dispor do valor das boas obras, não se renuncia,
tanto quanto é possível, ao que o cristão tem de mais precioso e
mais querido que são os seus méritos e satisfações.
124. 2º. Segue ainda que uma pessoa assim, voluntariamente
consagrada e sacrificada a Jesus Cristo por Maria, já não
pode dispor do valor de qualquer das suas boas ações. Tudo o
que sofre, tudo o que pensa, diz e faz de bom, tudo isso pertence
a Maria. Ela pode empregá-lo segundo a vontade de
seu Filho e para a sua maior glória, sem que, todavia, esta
dependência prejudique de algum modo as obrigações do estado
a que essa pessoa atualmente ou no futuro pertença. Por
exemplo, as obrigações dum sacerdote que, por seu ofício ou
por outra razão, deve aplicar o valor satisfatório e impetratório
da Santa Missa a um particular. Pois esta doação total só se
faz conforme a ordem que Deus estabeleceu e os deveres de
estado.
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125. 3º. Enfim, segue-se que esta Consagração é feita conjuntamente
à Santíssima Virgem e a Jesus Cristo: à Santíssima
Virgem como ao meio perfeito que Jesus Cristo escolheu para
se unir a nós e nos unir a Ele; a Nosso Senhor como ao nosso
fim último, a quem devemos tudo o que somos, como a nosso
Redentor e nosso Deus.
Com esta Devoção damos a Jesus Cristo
tudo o que lhe podemos dar, e da maneira mais perfeita,
porque o fazemos pelas mãos mesmas de Maria.
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Artigo Segundo
Uma Perfeita Renovação dos Votos do Santo Batismo
126. Como disse, esta Devoção podia muito justamente chamar-
se uma renovação perfeita dos votos ou promessas do
Santo Batismo. Todo cristão, antes do Batismo, era escravo
do demônio, pois lhe pertencia. Ao receber este sacramento
renunciou solenemente, pela própria boca ou pelas de seu
padrinho e sua madrinha, a satanás, às suas pompas e às suas
obras. Assim tomou a Jesus Cristo por seu Mestre e Soberano
Senhor, a fim de depender d'Ele na qualidade de escravo de
amor. É o que se faz pela presente Devoção: renuncia-se (como
está expresso na fórmula da consagração), ao demônio, ao
mundo, ao pecado e a si mesmo, dando-se inteiramente a Jesus
Cristo pelas mãos de Maria. E ainda se faz mais, porque
no Batismo fala-se habitualmente pela boca de outra pessoa,
isto é, do padrinho e da madrinha. A entrega a Jesus Cristo é
feita por intermediários. Mas nesta Devoção damo-nos por nós
mesmos, voluntariamente, com conhecimento de causa.
No Batismo não nos damos a Jesus Cristo pelas mãos
de Maria, ao menos de maneira expressa, e não damos a Jesus
Cristo o valor das nossas boas obras. Ficamos, depois de recebido
o sacramento, com plena liberdade de aplicar aquele
valor a quem quisermos ou de o reservarmos para nós. Por
esta Devoção, porém, damo-nos expressamente a Nosso Senhor
pelas mãos de Maria, e consagramos-lhe o valor de todas
as nossas ações.
127. Diz Santo Tomás: “Os homens fazem no Batismo voto de
renunciar ao demônio e às suas pompas”. E, segundo Santo
Agostinho, é este o maior e mais indispensável dos votos, em
que prometemos permanecer em Cristo. O mesmo dizem os
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canonistas: “O principal voto é aquele que fazemos no Batismo”.
No entanto, quem é que guarda este grande voto? Quem
cumpre fielmente as promessas do Santo Batismo? Não é verdade
que quase todos os cristãos quebram a fidelidade prometida
a Jesus Cristo no seu Batismo? Donde provirá este
desregramento universal, senão do esquecimento em que se vive
das promessas e compromissos do Batismo, e do fato de que
quase ninguém ratifica por si mesmo o contrato de aliança que
fez com Deus por meio de seus padrinhos!
128. Isto é muito verdade. O Concílio de Sens foi convocado
por ordem de Luís, o Bondoso, para remediar as grandes
desordens dos cristãos. Ora, este concílio entendeu que a principal
causa dessa corrupção de costumes provinha do esquecimento
e da ignorância em que se vivia das promessas do
Batismo. E não encontrou melhor meio para remediar tão grande
mal que o de levar os cristãos a renovar os votos e promessas
do Santo Batismo.
129. O Catecismo do Concílio de Trento, fiel intérprete das
intenções deste santo concílio, exorta os párocos a fazer o
mesmo: “Levem os seus fiéis a recordar e crer que estão ligados
e consagrados a Nosso Senhor Jesus Cristo como escravos
ao seu Redentor e Senhor”.
130. Ora, os concílios, os Padres da Igreja e até a experiência
mostram-nos que o melhor meio para remediar os
desregramentos dos cristãos é lembrar-lhes as obrigações do
seu Batismo e fazer-lhes renovar os votos que nele emitiram.
Portanto, não é bastante razoável que o façamos agora duma
maneira perfeita, mediante esta Devoção e consagração a Nosso
Senhor por meio de sua Mãe Santíssima? Digo duma ma99
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neira perfeita porque, ao consagrarmo-nos a Jesus Cristo, nos
servimos do mais perfeito de todos os meios, que é a
Santíssima Virgem.
Respondendo a algumas objeções
131. Não se pode objetar que esta Devoção seja nova ou
indiferente. Não é nova, pois os concílios, os Padres e vários
outros autores, antigos e modernos, falam desta Devoção a
Nossa Senhora, ou renovação dos votos do Batismo, como de
coisa praticada antigamente, e que aconselham a todos os cristãos.
Não é indiferente ou sem importância, porque a principal
fonte de todas as desordens, e logo, da condenação dos cristãos,
vem do esquecimento e do abandono desta prática.
132. Poderá alguém dizer que esta Devoção, fazendo-nos
dar a Nosso Senhor, pelas mãos da Santíssima Virgem, o valor
de todas as nossas boas obras, orações, mortificações e
esmolas, nos impossibilita de socorrer as almas de nossos parentes,
amigos e benfeitores.
Em primeiro lugar, respondo que não é de crer que os
nossos amigos, parentes ou benfeitores sejam prejudicados
pelo fato de nos termos dedicado e consagrado sem reservas
ao serviço de Nosso Senhor e da sua Santa Mãe. Pensá-lo
seria fazer uma injúria ao poder e à bondade de Jesus e Maria,
que saberão muito bem socorrer os nossos parentes, amigos e
benfeitores com o nosso pequeno tesouro espiritual, ou por
outros meios.
Em segundo lugar, esta prática não impede que se reze
pelos outros, quer sejam vivos ou mortos, embora a aplicação
das nossas boas obras dependa da vontade da Santíssima Virgem.
Mas, pelo contrário, levar-nos-á a orar com mais confi-
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ança, precisamente como uma pessoa rica que tivesse entregado
toda a sua fortuna a um grande príncipe, para o honrar
melhor, suplicaria com mais confiança a este príncipe que
desse esmola a algum dos seus amigos que lha pedisse. Daria
até prazer ao príncipe por proporcionar-lhe assim ocasião de
mostrar seu reconhecimento para com uma pessoa que se despojou
para o revestir, e que se fez pobre para o honrar. O
mesmo se deve dizer de Nosso Senhor e da Santíssima Virgem:
nunca se deixarão vencer em gratidão.
133. Dirá talvez outro, se dou à Santíssima Virgem todo o
valor das minhas ações para que o aplique a quem quiser, será
talvez preciso que sofra muito tempo no Purgatório.
Esta objeção, que nasce do amor próprio e da ignorância
acerca da liberalidade de Deus e da Virgem destrói-se por
si mesma. Uma alma fervorosa e generosa, que preza mais os
interesses de Deus que os seus; que dá a Deus, sem reservas,
tudo o que tem, sem poder dar mais; que só anseia pela glória
e pelo Reino de Jesus por Maria; que se sacrifica inteiramente
para o conseguir; essa alma generosa e liberal haverá de ser
castigada no outro mundo por ter sido mais liberal e mais
desinteressada do que as outras? De modo algum: é para com
essa alma, como veremos mais adiante, que Nosso Senhor e
sua Santa Mãe são mais liberais neste mundo e no outro na
ordem da natureza, da graça e da glória.
134. É necessário vermos agora, o mais brevemente possível,
os motivos que nos devem tornar recomendável esta Devoção,
os maravilhosos efeitos que produz nas almas fiéis, e
as suas práticas.

São Luís Maria Grignion de Montfort, Tratado da Verdadeira Devoção à Santíssima Virgem

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