quinta-feira, 4 de outubro de 2012

São Francisco de Assis e a Vocação Mais Perfeita

 
Thomas Merton

Estes pensamentos sobre a vocação são evidentemente incompletos. Mas há uma lacuna que precisa ser preenchida para evitar toda a confusão. Falamos das vidas ativa e contemplativa, sem até aqui nos referir à vocação que S. Tomás coloca acima de qualquer outra? a vida apostólica em que os frutos da contemplação são divididos com outros.

Em lugar de falar teoricamente desta vocação, consideremo-la, antes, em sua perfeita encarnação num dos maiores santos: Francisco de Assis A estigmatização de S. Francisco foi o sinal divino de que ele foi de todos os santos o mais semelhante a Cristo. Ele conseguiu, mais do que nenhum outro, reproduzir em sua vida a simplicidade, a pobreza e o amor de Deus e dos homens, que marcaram a vida de Jesus. Mais do que isso, Ele foi um Apóstolo que encarnou perfeitamente o espírito e a mensagem do Evangelho. Conhecer S. Francisco é simplesmente compreender o Evangelho, e segui-lo no seu verdadeiro e integral espírito, é viver o Evangelho em toda a sua plenitude. O gênio da sua santidade fê-lo capaz de comunicar ao mundo os ensinamentos de Cristo não neste ou naquele aspecto, não em fragmentos desenvolvidos pelo pensamento e a análise, mas na total plenitude da sua simplicidade existencial. S. Francisco foi, como devem ser todos os santos, simplesmente "um outro Cristo".

Sua vida não reproduziu somente este ou aquele mistério da vida de Cristo. Ele não se contentou de reviver as humildes virtudes da infância divina e da vida oculta em Nazaré. Não foi só tentado como Cristo no deserto ou cansado como Ele nas viagens do seu apostolado.  Não fez só milagres como Jesus. Não foi, apenas, crucificado como Ele. Todos esses mistérios foram unidos na vida de Francisco, e nós os encontramos todos ali, ora em separado, ora em conjunto. Cristo ressuscitado reviveu perfeitamente nesse santo que foi completamente possuído e transformado pelo Espírito da divina caridade.

A frase de S. Tomás, contemplata aliis tradere (dividir com outros os frutos da contemplação), não é retamente compreendida se não temos em mente a imagem de um S. Francisco andando pelas estradas da Itália medieval, transbordando de alegria com a mensagem que só podia ser-lhe diretamente comunicada pelo Espírito de Deus. A sabedoria e a salvação pregadas por Francisco foram não apenas a exuberância da mais alta espécie de vida contemplativa, mas foram simplesmente a expressão da plenitude do Espírito cristão, isto é, do Espírito Santo.

Homem algum poderá ser um apóstolo de Cristo, se não é cheio do Espírito Santo. E homem algum é cheio de Espírito Santo, se não faz o que normalmente se espera de um homem que segue Cristo até o fim: abandonar todas as coisas, para recobrá-las em Cristo.

O que há de notável em S. Francisco, é que no sacrifício que fez de todas as coisas, ele incluiu também todas as "vocações", no sentido limitado do termo. Edificados durante séculos pelos vários ramos da família religiosa franciscana, ficamos surpresos de pensar que S. Francisco se pôs em marcha nas estradas da Umbria, sem a menor idéia de possuir uma "vocação franciscana". E de fato não possuía. Ele lançara aos ventos todas as vocações, com as suas vestes e outras possessões. Não se considerava um apóstolo, mas um mendigo errante. Certamente não se tomou por monge; se tivesse querido ser monge, teria achado uma porção de mosteiros para entrar. E, evidentemente, não era também consciente de ser um "contemplativo". Nem se preocupava com comparações entre as vidas ativa e contemplativa. Levava, entretanto, as duas ao mesmo tempo, e com a mais alta perfeição. Nenhuma boa obra lhe foi estranha, nenhuma obra de misericórdia, corporal ou espiritual, faltou em sua bela vida! Sua liberdade abraçava tudo.

Francisco poderia ter sido ordenado padre. Recusou por humildade (pois isso também teria sido uma "vocação", e ele estava acima das vocações). Mas tinha, de fato, a perfeição e a quintessência do espírito apostólico de sacrifício e caridade, que são necessários na vida de cada sacerdote.

É preciso um instante de reflexão para aceitar o pensamento que S. Francisco nunca disse Missa, o que é difícil de crer a quem for penetrado do seu espírito.

Se havia em seu tempo uma vocação reconhecida, que Francisco podia ter associado com a sua vida, era a de eremita. Os eremitas foram os únicos membros duma classe definida de religiosos, que ele imitou com nitidez. Saía, frequentemente, para as montanhas a rezar e a viver solitário. Mas não pensou, jamais, que tinha a "vocação" de só fazer isto. Ficava sozinho enquanto o Espírito o conduzia à solidão, e depois deixava-se levar de volta às cidades e aldeias, pelo mesmo Espírito.

Se ele tivesse pensado nisso, poderia ter reconhecido que a sua vocação era essencialmente "profética". Era como outro Elias ou Eliseu, ensinado pelo Espírito na solidão, mas reconduzido por Deus às cidades dos homens com uma mensagem a dizer-lhes. As muitas facetas da vocação de um S. Francisco mostram que aqui ultrapassamos os ordinários "estados de vida". Mas é por este motivo mesmo que, ao falar de "vida mista", ou de "vocação apostólica", faríamos bem em pensá-las em termos de um S. Francisco ou de um Elias. A "vida mista" é muito facilmente reduzida ao seu nível mais baixo, onde ela não é mais que uma forma da vida ativa. Nesse plano, ela perde em comparação com a vida contemplativa. Por quê? Porque a dignidade da vida apostólica, segundo S. Tomás, deriva não do elemento de ação que ela contém, mas do elemento de contemplação. Uma vida de pregação sem contemplação não passa de uma "vida ativa", e, embora possa ser muito santa e meritória, não pode reivindicar a dignidade atribuída por S. Tomás à vida que "divide, com outros os frutos da contemplação".

Mas na proporção em que um frade mendicante se aproxima do ideal de fundador, na proporção em que ele vive a pobreza e a caridade de Francisco ou Domingos, e mergulha no conhecimento amoroso de Deus que só a poucos é concedido, na proporção em que se abandona ao Espírito Santo, ele ultrapassará de muito a perfeição contemplativa daquele cuja contemplação é um dom recebido para si somente.

MERTON, Thomas. Homem Algum É Uma Ilha. Rio de Janeiro: AGIR, 1968. p. 139-141.
Créditos: GRAA

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