terça-feira, 1 de outubro de 2019

A Graça da Discrição - por São João Cassiano

            Após termos dormido um pouco nas primeiras horas da manhã, finalmente vimos com alegria o raiar do dia, e logo passamos a reclamar a conferência prometida. O bem-aventurado Moisés assim começou: Quando vos vejo inflamados por tão grande desejo, mal posso acreditar que os poucos instantes subtraídos à conferência para vosso repouso vos possam ter reparado as forças. Ao considerar, porém, vosso fervor, sinto-me tomado por maior solicitude, pois reconheço que meu zelo em atender-vos deve ser tanto maior quanto vosso empenho em exigi-lo. Pois a Escritura diz: Se te assentas à mesa com um grande, procura reconhecer sabiamente o que te servem, e usa a tua mão, sabendo que igual festim deveras preparar (Pr 23,1-2 - LXX). 
           Passaremos, portanto, a discorrer sobre o bem e a eficácia da discrição e de sua virtude da qual começávamos a tratar, quando interrompemos a conferência da noite. Parece-nos, pois, oportuno ressaltar o seu valor, a partir das sentenças de nossos Pais. Conhecidos seus pensamentos e ditos, mencionarei diversas pessoas cuja queda antiga ou recente, outra causa não teve senão o menosprezo por tal virtude. Por isso, de acordo com nossas possibilidades, trataremos de sua utilidade e de seus benefícios. Enfim, persuadidos de sua excelência e dignidade, poderemos, com maior proveito, instruir-nos sobre a maneira de alcançá-la e aperfeiçoá-la.
       Na verdade, a discrição não é uma virtude medíocre, que possa ser alcançada, casualmente, apenas por nossa diligência. Ela deve ser considerada um dom com que a liberalidade divina nos agracia. Aliás, o Apóstolo a enumera entre os mais nobres dons: A um o Espírito dá a mensagem de sabedoria; a outro, a palavra de ciência, segundo o mesmo Espírito; a outro o Espírito dá a fé; a outro, ainda, o único e mesmo Espírito concede o dom das curas (ICor 12,8-9). E pouco adiante: A outros o discernimento dos espíritos (ou discrição) (id. 10). Depois, completada a lista dos carismas espirituais, ele acrescenta: Mas é o único e mesmo Espírito que isso tudo realiza, distribuindo os seus dons a cada um, conforme lhe apraz (id. 11). 
         Vedes, portanto, que o dom da discrição nada tem de terrestre ou de pequeno, mas é uma dádiva magnífica da graça divina. Se o monge não põe todo o seu empenho em alcançá-la e não é capaz de discernir com segurança os espíritos, ele, inevitavelmente, qual homem que anda errante numa noite escura por espessas trevas, não só será a vítima fatal de armadilhas e precipícios como também, certamente, tropeçará com bastante frequência, mesmo ao percorrer caminhos planos e retos.

Sobre o benefício que só a discrição concede ao monge. 
Discurso do abade Antão sobre esse assunto

         Lembro-me de que, outrora, nos anos de minha infância, na região da Tebaida, onde morava o bem-aventurado Antáo, alguns dos antigos o procuravam para interrogá-lo a respeito da perfeição. A conferência do monge então se alongava da hora de Vésperas até o amanhecer, ocupando esse assunto a maior parte da noite. Insistentemente inquiríamos qual a virtude ou observância que seria mais capaz de guardar o monge das artimanhas e ilusões do demônio, fazendo-o, ao mesmo tempo, galgar em linha reta e com passo firme os cumes da perfeição. Cada um dava sua opinião de acordo com seu próprio entendimento. Uns julgavam que isso devia ser conseguido pela dedicação aos jejuns e vigílias através dos quais, a alma espiritualizada, tendo conseguido a pureza do corpo e do coração, podia com maior facilidade unir-se a Deus. Outros consideravam ser a renúncia a todas as coisas que, despojando a alma completamente de todos os laços, fazia com que essa chegasse a Deus mais desembaraçada. Alguns, ainda, achavam indispensável a anacorese, isto é, o afastamento do mundo e o retiro para o recesso do deserto, onde os colóquios com Deus se tornam mais familiares e mais íntima a união com ele.
           Finalmente, havia ainda os monges que priorizavam a prática da caridade, isto é, os serviços de hospitalidade, aos quais o Senhor, no Evangelho, de maneira especial, prometera dar o reino dos céus: Vinde, benditos de meu Pai, possuí o reino que vos foi preparado desde o início do mundo. Pois tive fome e me destes de comer, tive sede e me destes de beber (Mt 25,34-35). E assim, enquanto eles atribuíam a diversas virtudes o poder de abrir um caminho mais seguro para Deus, consumiam, nessa indagação, a maior parte da noite. Finalmente, o bem- -aventurado Antão tomou a palavra: tudo quanto dissestes é necessário e útil aos que têm sede de Deus e anseiam por encontrá- -lo. Mas, atribuir-lhes o principal mérito para chegar a tal meta, não nos é permitido, em virtude das experiências e quedas de muitos irmãos.
           Na verdade, quantas vezes vimos os que se entregavam aos mais duros jejuns e vigílias retirar-se à mais absoluta solidão, provocando a maior admiração, lançar-se em tal des- pojamento de bens que não admitiam sequer guardar para si os víveres para um dia, nem mesmo uma só moeda, desempenhando, também, com toda a dedicação, os deveres da hospitalidade; no entanto, de repente, de tal modo foram ludibriados que não puderam levar a bom termo a obra iniciada, concluindo, com um fim abominável, tão grande fervor e vida tão meritória.
       No entanto, se procurarmos com exatidão a causa de tal ilusão e de tal queda, poderemos reconhecer, com toda a evidência, a principal virtude capaz de nos conduzir a Deus. Pois, embora as obras daquelas virtudes superabundassem neles, foi suficiente a falta da discrição para que não pudessem perseverar até o fim. Não se pode realmente descobrir outra causa para essa ruína, a não ser que, não tendo tido a felicidade de receber a formação por parte dos antigos, não lhes foi possível adquirir a virtude da discrição a qual, evitando os dois excessos contrários, ensina o monge a caminhar na estrada real. Pois, nem o deixa desviar-se para a direita, num excesso de fervor pelas virtudes, com as quais presume ingenuamente ir além dos limites da justa temperança, nem lhe permite descambar para a esquerda, seduzido pelo relaxamento e o vício e, sob o pretexto de bem governar o corpo, instalar-se numa indolente tibieza da alma. É essa a discrição que é chamada pelo Evangelho de olho e lâmpada do corpo, conforme a palavra do Salvador: Se o teu olho estiver são, todo o teu corpo ficará iluminado; mas se o teu olho estiver doente, todo o teu corpo ficará escuro (Mt 6,22-23). Isso porque, discernindo todos os pensamentos e atos dos homens, ela examina atentamente e vê, com luminosa claridade, tudo quanto devemos fazer.
       Entretanto, se esse olho for mau, isto é, desprovido de ciência e de juízo seguro, ou estiver iludido pelo erro e a presunção, tornar-se-á tenebroso e todo o nosso corpo, e toda a penetração da inteligência e toda a atividade serão obscu- recidos, pois que o vício cega e a paixão é a mãe das trevas. Pois se a luz que há em ti são trevas, quão grandes serão as trevas! (id. 23). Ninguém pode duvidar que, se nosso julgamento é falso, e se encontra mergulhado na noite da ignorância, também nossos pensamentos e nossas obras que derivam desse julgamento serão cobertos das trevas dos pecados.

O erro em que Saul e Acab caíram pela ignorância da virtude da discrição

           Aquele que, por juízo de Deus, foi o primeiro a merecer o reino de Israel, não teve esse olho da discrição, pois todo o corpo, de certo modo, estava envolto em trevas, acabando ele por ser derrubado do trono. Iludido pelos erros e trevas de sua lâmpada, julgou que seus sacrifícios fossem mais agradáveis a Deus do que a obediência ao mandamento de Samuel. E aquilo mesmo com que contara aplacar a majestade divina, foi-lhe na verdade, causa de revés (cf. lRs 15). Foi igualmente a ignorância da discrição que levou Acab, rei de Israel, depois do magnífico triunfo que obteve por favor divino, a julgar que a misericórdia fosse superior à execução severíssima da ordem divina, por demais cruel a seus olhos. Abalado por essa ideia, preferiu temperar a cruenta vitória com a clemência. Sua indiscreta piedade, no entanto, transforma-o totalmente em trevas, e ele é condenado a uma morte irrevogável.

Referências nas Sagradas Escrituras ao bem da discrição

          Ê essa a discrição que, após ser chamada lâmpada do nosso corpo, recebe do Apóstolo o título de sol, de acordo com a seguinte palavra da Escritura: Não se ponha o sol sobre a vossa cólera (Ef 4,26). Ainda é denominada leme de nossa vida, conforme outra palavra também da Escritura: Os que não têm leme, caem como folhas (Pr 11,14). Outro nome pelo qual merecidamente também a chamam é o de conselho, porquanto, sem conselho, a Escritura nada nos permite fazer; nem mesmo beber o vinho espiritual que alegra o coração do homem (SI 103,15), pois ela nos ordena o seguinte: Faze tudo com conselho, bebe o vinho com conselho (Pr 31,3), e mais: Como uma cidade de muros abatidos e sem defesa, assim é o homem que não age com conselho (Pr 25,28). De acordo também com essa outra passagem da Escritura, compreendemos quanto a falta de discrição é prejudicial ao monge que, privado de tal virtude, é comparado a uma cidade arrasada e destituída de muros.
          Na discrição se encontram a sabedoria, a ciência e o julgamento. Sem tais virtudes é impossível edificar nossa morada interior e amealhar as riquezas espirituais. Pois a Escritura afirma: Com sabedoria se edifica a casa, e com inteligência ela é levantada; com o julgamento enchem-se os celeiros de todos os bens preciosos e bons (Pr 24,3-4). A discrição é ainda, conforme a Escritura, o alimento sólido que só pode ser recebido pelos perfeitos e robustos: O alimento sólido épara os perfeitos, para aqueles que têm os sentidos exercitados pelo hábito, para a discrição do bem e do mal (Hb 5,14). Comprovadamente essa graça é tão útil e necessária, que é até comparada à palavra de Deus e às suas virtudes: Pois é viva e eficaz a Palavra de Deus, e mais penetrante do que qualquer espada de dois gumes; penetra até dividir a alma e o espírito, junturas e medulas. Ela julga as disposições e intenções do coração (Hb 4,12).
      Tudo isso mostra com clareza que nenhuma virtude, sem a graça da discrição, pode chegar à perfeita consumação ou mesmo subsistir. Assim foi estabelecido, não só pelo bem-aventurado An- tão, como por muitos outros, ser a discrição a virtude que conduz o monge a Deus, com passo firme e destemido. É graças a ela que se conservam indenes as virtudes acima mencionadas e podem ser galgados com menor dificuldade os cumes da perfeição, pois sem ela muitos, apesar de grande empenho e esforço, não puderam atingir aquela meta. Por isso a discrição é a mãe, a guardiã e a moderadora de todas as virtudes.

São João Cassiano. Conferência: Proêmio do abade Moisés sobre a graça da discrição. Espiritualidade Monástica. p. 57-59.


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