sábado, 28 de setembro de 2019

A imortalidade da alma - por São João Cassiano


       Por esse motivo, saiba cada um, desde agora, enquanto se acha neste corpo, que lhe será destinado o lugar e o ministério em que, na vida presente, se mostrou um membro devotado. E não duvide também que, no século futuro, terá a mesma sorte daquele a quem serviu e por cuja companhia já se decidiu. É a sentença do Senhor que diz: Se alguém quer servir-me, siga-me; e onde estou eu, aí também estará o meu servo (Jo 12,26). Assim como alguém, pela convivência com o vício, acolhe o reino do diabo, assim também, possuirá o Reino de Deus pela prática das virtudes, pela pureza do coração e pela ciência espiritual. Mas, onde está o Reino de Deus, aí também está, verdadeiramente, a vida eterna. 
        Do mesmo modo, onde se encontra o reino do diabo, com toda a certeza, ali também estão a morte e o inferno. E, quem ali permanece, jamais terá a possibilidade de louvar o Senhor, de acordo com as palavras do profeta: Os mortos não vos louvarão, Senhor, nem todos os que descem para o inferno (sem dúvida para o inferno do pecado), mas nós que vivemos (não para o vício, nem para este mundo, mas para Deus), bendizemos o Senhor, desde agora epara sempre (SI 113,17-18). Porque não há na morte ninguém que se lembre de Deus; no inferno (do pecado), quem louvará o Senhor? (SI 6,6). O que significa: ninguém. De fato, ninguém, embora milhares de vezes se tenha professado cristão ou monge, louva o Senhor quando peca.
          Porquanto ninguém se lembra de Deus quando comete o que é abominável aos olhos do Senhor nem, de verdade, se declara servo daquele, cujos mandamentos despreza, com obstinada temeridade. É dessa morte que está morta a viúva que vive nas delícias, como afirma o santo Apóstolo: A viúva que vive nas delícias, embora ainda viva, já está morta (lTm 5,6). Existem muitos que, embora estejam vivos corporalmente, todavia, já estão mortos e jazem no inferno sem poder louvar a Deus. Em contrapartida, porém, existem os que, mortos no corpo, louvam o Senhor pelo espírito, segundo a palavra: Bendizei ao Senhor, espíritos e almas dos justos (Dn 3,86). E ainda: Todo o espírito louve o Senhor (SI 150,6). Também o Apocalipse afirma que: As almas dos imolados não apenas louvam a Deus, mas clamam por ele (cf. Ap 6,9-10). E no Evangelho o Senhor fala ainda com mais limpidez: Não lestes o que Deus vos declarou: Eu sou o Deus de Abraão, Deus de Isaac e o Deus de Jacó? Ora, ele não é o Deus dos mortos, mas sim dos vivos (Mt 22,31-32). 
         Com efeito, todos vivem para Deus. É referindo- -se a eles que diz o Apóstolo: Eles aspiram a uma pátria melhor, isto é, a uma pátria celestial. E por isso que Deus não se envergonha de ser chamado o seu Deus. Pois, de fato, preparou-lhes uma cidade (Hb 11,16). Pois as almas, depois de separadas de seus corpos, não ficam inativas, nem privadas de sentimentos, conforme nos narra a parábola do pobre Lázaro e do homem rico vestido de púrpura. O primeiro merece o lugar da suprema felicidade, o repouso no seio de Abraão; o segundo é abrasado pelo intolerável ardor do fogo eterno (cf. Lc 16,18ss). E, se quisermos, igualmente, atentar para o que Jesus disse ao ladrão, ouviremos: Hoje estarás comigo no paraíso (Lc 23,43); e teremos, assim, a evidência de que não só as almas permanecem com seus conhecimentos anteriores, mas que também desfrutam de um destino condizente com a vida e os méritos que tiveram. 
         O Senhor jamais teria feito tal promessa ao ladrão, se soubesse que, após a separação do corpo, sua alma seria privada de sentimentos ou diluída no nada. Não era seu corpo, mas sua alma que deveria entrar com Cristo no paraíso. Convém, pois, evitar, ou melhor, abominar a perversa distinção de certos heréticos que, não acreditando no poder de Cristo de estar no céu no mesmo dia em que desceu aos infernos, fazem a seguinte interpretação, cortando assim a sentença: Em verdade eu te digo boje e, fazendo aí uma interrupção, acrescentam: Estarás comigo no paraíso. Logo, de acordo com tal interpretação, não deveríamos compreender tal promessa como se ela se fosse realizar imediatamente, logo após a morte, mas como um anúncio de algo que se realizaria só depois da ressurreição. Tais intérpretes não compreenderam aquilo que Jesus, antes da ressurreição, disse aos judeus que acreditavam ser o Mestre, como eles mesmos, sujeito aos estreitos limites da humanidade e da fraqueza da carne: Ninguém subiu ao céu, a não ser aquele que desceu do céu, o Filho do Homem (Jo 3,13). Tudo isso prova claramente que as almas dos defuntos não ficam privadas das faculdades intelectuais, nem de sentimentos, tais como a esperança, a tristeza, a alegria e o medo. E, além disso, já começam a antegozar algo do que lhes estaria reservado no juízo universal. 
        Enfim, as almas dos falecidos não se diluem no nada, como julgam alguns incrédulos, mas, ao contrário, subsistem de maneira mais intensa, e se entregam ao louvor divino com fervor ainda maior. E se, de fato, deixarmos por um momento o testemunho das Escrituras, para tratarmos da natureza da alma, de acordo com a mediocridade da minha inteligência, penso que seria o cúmulo, já náo digo da fatuidade, mas até mesmo da loucura, supor, embora momentaneamente, que a parte mais preciosa do homem, a que traz em si, segundo o santo Apóstolo, a imagem e a semelhança de Deus (cf. ICor 11,7; Cl 3,10), uma vez destituída do fardo corporal que a embota, se pudesse tornar insensível? Justamente a alma que sozinha contém em si a força da razáo e propicia a sensibilidade, por sua participação na matéria muda e inanimada da carne tornar-se-ia insensível? É absolutamente lógico e conforme à reta ordem da razáo, concluir que a alma, livre desse invólucro carnal que a entorpece, recupere, em melhores condições, suas faculdades intelectuais, que devem estar ainda mais purificadas e sutis. O bem-aventurado Apóstolo está a tal ponto convicto dessa verdade, que chega a desejar sair da própria carne para assim poder unir-se intimamente a Deus: Meu desejo é partir e ir estar com Cristo, pois isso me é muito melhor (F1 1,23). Porque, enquanto estamos no corpo, estamos em exílio, longe do Cristo (2Cor 5,6). Pois estamos cheios de confiança e preferimos deixar a mansão deste corpo para ir morar junto do Senhor. E também por isso que nos esforçamos para agradar-lhe, quer permaneçamos em nossa mansão, quer a deixemos (2Cor 5,8-9). 
         Assim, declara ele que a habitação na carne é um exílio longe do Senhor e uma ausência em relação a Cristo, ao passo que confia, com toda a fé, que a separação deste corpo corresponde à presença junto a Cristo. Com clareza ainda maior, ele fala, em outra passagem, sobre a vida intensa que usufruem as almas que estão perto do Senhor. Vós vos aproximastes do monte Sião e da cidade do Deus vivo, a Jerusalém celeste, e de milhões de anjos reunidos em festa, e da assembléia dos primogênitos cujos nomes estão inscritos nos céus e de Deus, o Juiz de todos e dos espíritos dos justos que chegaram à perfeição (Hb 12,22-23). Ainda numa alusão aos espíritos bem-aventurados, em outra passagem ele afirma: Tivemos os nossos pais segundo a carne como educadores e os respeitávamos. Não haveremos de ser muito mais submissos ao Pai dos espíritos, afim de vivermos? 

São João Cassiano. Conferência: A IMORTALIDADE DA ALMA. Espiritualidade Monástica. p. 37-41.

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